quarta-feira, 6 de abril de 2011

Teerão (Texto 2 de 3 publicados a 6 de Abril)


Neste post os nomes e circunstâncias talvez estejam trocados, mas não altera a mensagem.

Cheguei a Teerão no autocarro cujo pneu explodiu. Tudo tranquilo na viagem , tirando o méne a usar o meu ombro, bem, o meu corpo, como almofada, imune ao típico “...” (ia escrever a onomatopeia mas não sei como o fazer) – bem o típico limpar de garganta que o pessoal faz para chamar a atenção. Tudo tranquilo, quase a chegar e PAM! O gajo seguiu como se nada fosse, mas foi bem jogado, sendo que estávamos a duzentos metros da estação e o pneu ia esvaziar. Isso não interessa, p’raqué que estou a dizer isto?
 
Uma vez chegado a Teerão pedi a alguém para ligar ao meu anfitrião, o Ali. Ele disse-me as indicações e disse para eu apanhar um táxi. Que riso! Eu com os meus 75 dólares para 25 dias e ele a dizer-me para apanhar um táxi. Não sei se escrevi sobre isto. Basicamente, o meu cartão não funciona aqui e quando “aterrei” no Irão tinha 85 dólares que têm de durar para 10 dias no Irão e 15 no Paquistão. Entrei no país há 4 dias e tenho o equivalente a 75, ahah! Nada mal! Pois então eu lá disse ao rapaz que bom, bom, era eu ir a pezinho. Ele disse que era longe, e para apanhar um autocarro. “Ainda não me conheceu e já me deve achar um mão de vaca terrível!”, pensei. Meti-me num autocarro que não tive de pagar, e apercebi-me logo de algo que não dava para uma pessoa não se aperceber. Nos autocarros e nos metros, percebi uns dias mais tarde, há uma zona exclusivamente para mulheres. Ou seja, as mulheres tendem a viajar nessa zona, mas podem viajar com os homens, ao passo que os homens só viajam na zona deles. Outra coisa em que reparei foi que nenhuma mulher, nenhuma mesmo, usa a burka, como se imagina. É obrigatório cobrirem o cabelo, e assim o fazem, mas a malta mais jovem veste-se à ocidental, mais ou menos, e cobre o último terço da cabeça. Uma estupidez. Mesmo. Não que elas usem o lenço, ou cachecol, ou seja o que for, na cabeça, mas que tenham  de o usar. Conheci malta porreira mesmo. Um pequeno salto no tempo. No dia seguinte tinha recebido uma mensagem de uma rapariga que vira no couchsurfing que eu estava pela cidade, e perguntara se queria ir dar uma volta no dia seguinte. Iá, claro. Assim fui, e tive oportunidade de conhecer o seu namorado e grupo de amigos. Pessoal do mais à frente... ok, estou a exagerar. Ia dizer “pessoal do mais à frente que há!”, tipo como se não houvesse coisa assim no mundo. Mas efectivamente, pessoal mesmo à frente, aberto, que ouve daquelas bandas que ninguém conhece mas que o pessoal fixe como eu conhece, que vê os filmes que eu conheço e outros que pessoal fixe como eu não sou, conhece. Pessoal que tem de viver com um governo castrante. Tão castrante que nem sei se devo escrever estas cenas aqui. Não é paranóia, mas a cena aqui não é brinquedo. Mais tarde, quando sair do país, escrevo algo.
               
Lá cheguei onde o meu anfitrião tinha dito para nos encontrarmo-nos. Fomos para sua casa e estivemos à conversa sobre políticas e situações mais, ou menos, desagradáveis. Um pormenor deveras interessante: ele tem um gémeo! – não, não é isto que é interessante. O que é interessante é que tem um gémeo que foi criado (tanto quanto possível) exactamente na mesma situação que ele, e são completamente diferentes. Um orientado para um lado a nível político e nacional, o outro para o outro. Um que reclamou o apartamento extra que os pais têm no mesmo edifício para viver, outro que acha que um filho deve acatar o que os pais lhe dizem e não refilar (do mesmo modo que com o seu país). Achei fascinante, mas não me quero alongar em detalhes das conversas.

Estivémos assim na descontra e depois ele esteve a ver um filme e eu a fazer umas cenas pendentes na net. No dia seguinte foi-me mostrar os arredores. Teerão não é de cortar a respiração, mas não tem nada a ver com o que eu imaginava. Na minha ignorância, imaginava uma cidade poeirenta, tipo à filme, cheia de mulheres com burka e homens com aquela bata. Não tem nada a ver! Mesmo nada! Pá é practicamente como uma cidade europeia.

Como eu curto não parecer o turista, e o Ali até tinha tirado um curso de barbeiro, decidi aproveitar, ele não se importava. Já me tinham dito que parecia iraniano mesmo com o cabelo comprido, mas queria “infiltrar-me” ainda mais. Além disso, às vezes um gajo não toma banho um par de dias, e cabelo mais curto é mais fácil de manter limpo. Fiz a barba também, deixando o bigode e pera, mas tudo junto. Desde então já perdi a conta às vezes em que me disseram que parecia iraniano. E quando vou ter com alguém com quem combinei na net, espantam-se dizendo-me o quão diferente estou. Não sei porquê rejubilo com estas coisitas. Pois dizia que Teerão, ainda que não corte a respiração, é fixe. E um grande pormenor, passe o paradoxo, esse sim muito fixe, é o facto de estar rodeada por montanhas, e podermos, num instante, aceder a uma, trepando as escadas entre os restaurantes pendurados nos patamares de cada pouso. Andámos por aí um pedaço, e tinha de me recordar que estava, efectivamente, na capital de um país, e não algures perdido numa vila nas montanhas. Agradável.
               
Conto depois os dias seguintes. Estou na cama em Esfehan, caminhei mais de 20km hoje e quero dormir. Amanhã sigo para Shiraz.

0h44-4ª-30-3-11
Esfehan, Irão

Estou no autocarro para Shiraz, de Isfehan. Estou-me a passar com este pessoal. E que timing perfeito que eu tive, sem querer.       

Acordei às 9h15, tomei banho, pequeno-almoço com os pais da Mahsa, minha anfitriã (ela foi ontem para Numseionde mas os pais não se importaram que eu ficasse mais um dia) e bazei com a prima da Mahsa. Ela ia estudar para um escritório de um primo no centro e seguimos o mesmo caminho. Caminhámos pouco mais de meia hora e depois apanhámos um autocarro (10 cêntimos de dólar) para a Praça Azidi. Aí pus-me a caminho. Passados dez minutos um carro parou, sem eu sequer o chamar, e mostrando o meu papel, falaram em terminal. Até com o papel a dizer que não quero apanhar autocarro o pessoal para o terminal me manda. A meio da viagem ainda pensei que eles fossem mesmo para Shiraz. Mas não iam. Não iam e deixaram-me à entrada de uma estrada principal para Shiraz, em frente ao terminal. Interpelei alguns carros que pararam, mas nada feito. Houve um que parou, e de onde sairam um velho e uma velha. Dirigia-me para o carro, mas reparei que os cotas lhe deram dinheiro, por isso voltei para trás, certo de que era um daqueles “táxis”. O carro apitou e eu voltei para trás. Estava a mostrar o meu papel ao condutor, que me devolveu o livro e disse que não me levava, quando o cota começou a falar comigo em inglês. Fiquei surpreso por ele falar inglês. Ele disse para eu apanhar o autocarro, que era melhor, e eu disse que preferia ir à boleia, sendo que não tinha de pagar. E não é que ele me disse para ir com ele que me pagava o bilhete? Demais. Ainda por cima este autocarro é VIP, queira isso dizer o que quiser...

O grupo que conheci era adepto do movimento verde, o principal partido da oposição, assim como toda a gente com quem falei. É certo que o pessoal que conheço são couchsurfers, daí mais abertos e daí mais propensos a apoiar este partido. Eles não têm dúvidas nenhumas que as eleições foram manipuladas. Foram a todas as manifestações, que muitas vezes acabam em violência. Ontem conheci uma pessoa na rua a cuja irmã lhe partiram uma perna com um bastão. Essa mesma pessoa também teve, há um ano de esconder durante meia hora debaixo de um carro enquanto os Basig (algo assim) desancavam o seu grupo à porrada. De vez em quando morre pessoal nas demonstrações, e o governo diz, aparentemente, que são pessoas que vêm do estranjeiro e as matam.

Os Basig é uma espécie de milícia... nem sei, não consegui perceber muito bem o que é que eles são. Mas basicamente é pessoal que anda à paisana a manter o pessoal na linha, seja a certeficar-se que as mulheres usam o lenço na cabeça convenientemente, e que não estão sensuais, seja a ver se há casais não casados a dar a mão ou mesmo uma rapariga a falar com um rapaz que não é da sua família ou seu familiar. Pelo menos neste último aspecto marimbam-se um bocado, parece-me. O pessoal com quem falei diz que os conseguem identificar, porque geralmente são feios, têm barba, cara de zangados e cheiram mal. Não sei que dizer, mas pelos vistos funciona. Ontem acho que vi um par destes em acção. Estava a atravessar a ponte pedonal de Esfehan e vi um méne de barba a falar agressivamente com uma rapariga, que estava sentada na beira da ponte. Disse-lhe qualquer coisa e ela ajeitou o lenço na cabeça. Reparei que tinha uma walkie-talkie bem como o outro gajo com quem falou. Este grupo, ou lá o que é, não responde perante a polícia e ninguém sabe bem quem lhes paga.

- Então e se eles começarem a atacar-te por uma ou outra razão, não podes simplesmente chamar a polícia? – perguntei.
- Eles não respondem perante a polícia. A polícia não pode fazer nada – respondeu-me. Ok então.

Essa pessoa com quem tive a sorte de falar esteve envolvida num projecto levado a cabo pela nobel da paz de 2004, uma advogada iraniana. Este projecto consistia em recolher um milhão de assinaturas para mudar algumas leis no quadro iraniano. Passei-me quando me disse que: uma mulher não pode pedir o divórcio (a menos que o marido a agrida, seja alcoólico ou ganhe dinheiro ilicitamente); quando, por exemplo, se comete um crime, uma testemunha masculina vale por duas femininas – o mesmo acontece com outras situações que requiram testemunhas ou votos, à excepção, felizmente, de eleições; de acordo com a lei, se o marido morre, o filho não fica com a mãe, mas com o irmão do mesmo – se não houver irmão, com o pai do marido, e por aí fora, desde que seja do lado do pai. Ora é certo que muita gente “dá” o filho de volta à mãe, mas têm de ir a tribunal e oficializar a cena. Todavia, nas vilas e outros territórios eventualmente menos letrados, esta lei comanda...

Quando lhe perguntei se era feliz, disse-me que não. Quando perguntei o porquê, perguntou-me como poderia ser feliz se não pode vestir o que lhe apetece, não pode dizer o que lhe apetece, quase não pode pensar o que lhe apetece. Imagino como é ter de viver num mundo em que temos de fingir todos os dias, seja que acreditamos em deus (alá), que gostamos do partido que governa, etc...

Acho que devemos almejar viver num mundo cada vez mais justo e confortável para cada um de nós. E é certo que Portugal está longe de ter um nível que permita a todo e qualquer um disfrutar da sua VIDA em pleno, pelo menos de acordo com os padrões mais comummente aceites. Mas acho, igualmente, que vale a pena pensar nas tantas realidades mundo fora, que são tão piores que a nossa. Não digo que devíamos pensar “ai há pessoas que estão numa situação pior” e acomodarmo-nos, mas pelo menos para valorizarmos aquilo que temos, para nos focarmos não só nas tristezas e na tragédia de não podermos ir para aquele hotel de dez estrelas na lua, mas também nas riquezas fundamentais que temos, como a liberdade.

Se alguém confunde a liberdade de viver com a liberdade de ter, ou de fazer, lamento por tal alma.

Curti ter estado em Teerão. Tive oportunidade de conhecer, na rua, um par de gémeos muito interessante. Achei fascinante como eram tão diferentes um do outro. O mesmo código genético, criados pela mesma família nas mesmas circunstâncias, mas tão diferentes. Sendo um alguém que gostava de ver uma mudança radical no modo de viver iraniano, e outro aparentemente satisfeito com a falta de liberdade que lhe é imposta. Um que lutou para viver no apartamento extra que os pais têm, outro que acha que um filho deve fazer o que os pais querem, sendo que providenciam a educação e crescimento ao filho, e este tem mais é que estar grato – o mesmo para com o seu país. Engraçado – pais e país, subserviência.

Foi fixe ter estado com o Ali. É um rapaz de 28 anos com uma mente bastante activa. Introspectivo, ainda que talvez demais para o seu próprio bem. Não sabe o que quer da VIDA ainda, e isso, pareceu-me, atormenta-o. Falámos muito acerca do ser, do consumismo que nos é imposto todos os dias, e em como não ser consumista nada tem que ver com ser mão-de-vaca.

No meu último dia em Teerão andei pelas ruas com o Ali e Parisa. A Parisa era alguém que me ia albergar, mas que no final não o fez porque eu tinha ficado com o Ali. Ainda assim veio ter connosco e andaram a mostrar-me os cantos da cidade. O Ali estava com dor de cabeça e foi para casa. Nós comemos uma sanduíche e fomos dar uma volta de carro p’rai de hora e meia. Foi dos melhores passeios da minha VIDA. Curti bué. Pelas montanhas, a ouvir música espetacular, no Irão – demais. Adorei mesmo.

14h52-5ª- 31-3-11
Algures entre Esfehan e Shiraz

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