segunda-feira, 11 de abril de 2011

Quetta


O couchsurfer que talvez me pudesse ajudar não pôde fazer mais nada senão dizer-me o que deveria pagar por um táxi a caminho do hotel. O gajo queria ajudar, mas o sítio onde ele vivia fechava as suas portas às dez da noite, por isso nada feito. Não sabia onde ia ficar, mas tinha dez dólares ainda, algo havia de aparecer.

Quando cheguei a Zahedan, claro que o pessoal estava todo à “minha” espera. “Táxi?! Táxi?! Táxi?!”, perguntavam à medida que saíamos, como se o efeito repetitivo provocasse uma súbita mudança de opinião. Eu disse algo na linha de “terminal de autocarro” e um deles, mais persistente, que caminhava comigo, apontou com o dedo para o outro lado da rua e desistiu. Pensei que devia ter cuidado com o pouco dinheiro que me sobrava, tinha de o gerir bem, e passar a noite no terminal era algo que estava na mesa. Todavia, o terminal estava fechado. Não cheguei a ver, sou sincero, mas fui na palavra de um taxista que andou em marcha atrás p’rai 30 metros para me levar também. Fui na palavra dele porque realmente me parecia fechado, não havia luzes nem nada. Pedi para me levar a um hotel barato. Cometi um erro aqui – devia ter acertado o preço antes de entrar, e não o fiz.
               
O gajo foi andando e o pessoal que comigo ia no táxi foi saindo. Passámos num hotel, estava fechado. Outro, fechado. A dada altura estendi-lhe 2 dólares (o couchsurfer que não me pôde albergar tinha dito para eu não dar mais que isto) e o gajo começou a flipar. É certo que vi os outros darem-lhe mais que isto, mas também é certo que eles vinham de distâncias mais longuínquas que a minha. Entre um vai e vem de “não, 4 dólares” e um “vá lá méne, não me chules, ok?” o gajo, após murmurar algumas palavras que imagino saber o que eram, parou à frente de um postozito de polícia. Eu estava tranquilíssimo, nem senti aquele nervosinho nem nada. O gajo parecia um puto, e o jovem polícia sopinha-de-massa com cara de simpático deve ter achado o mesmo, porque falou com ele com aquele sorriso como quem diz “olha... deixa lá isso, pá... e qué’queu tenho a ver co-isso?”. O gajo lá foi, e o polícia foi comigo ver outro hotel. Fechado. O méne era tão fixe, que até disse que eu podia passar a noite no seu postozito minúsculo. Quem não foi muito com a ideia foi o outro cota bófia que lá dormia. Não sei que disse, mas percebi o tom, e passados dez minutos estava de novo ao relento. Não havia muito movimento. Ou melhor, não havia nenhum. Estava fixe, mas um ‘cadito apreensivo, e desagradado com isso mesmo. É que quando um gajo ouve, ouve, ouve sempre o mesmo, as cenas acabam por entrar, mesmo que não se queira. Às vezes é bom, pois incita ao cuidado, mas naquele caso, ter ouvido que Zahedan era tão perigoso deixou-me apreensivo quanto a andar na rua, simplesmente. E são tretas, tudo! Até porque no mesmo dia, em Kerman conhecera um méne de lá que me tinha dito o contrário. E esse era de lá, não era daqueles que tinha ouvido dizer.
               
Assim, após umas voltitas e decidido a não ficar num hotel, procurei um nichozito porreiro. E encontrei. Tinha lá um hotel de 4 estrelas e um jardinzito de cada lado. Era estreito , e sentei-me encostado à mochila, por sua vez encostada à parede, invisível aos transeuntes. Após uma hora e tal, quando ganhei mais confiança, saquei do saco-cama, enfiei a mochila no fundo do mesmo, e depois enfiei o que de mim cabia. O casaco a servir de almofada, e estava a adormecer lá p’rás 4 menos pouco da manhã. Dormi p’rai duas ou três horas assim, o que já não foi mau. O que foi positivo de ter dormido pouco foi que nem deu tempo para a boca começar a saber mal – isto é fixe para quem não lava os dentes há três ou quatro dias.
               
Acordado pus-me a caminho do posto de correios. Enviei os meus postaizitos e perguntei ao pessoal como se ia para o Paquistão. Mandaram-me “para ali”, e para lá fui. Partilhei um táxi com outros 4 e seguimos para a fronteira, a uma velocidade estonteante naquelas estradas cheias de buracos. Tinha de me recordar constantemente “este gajo é um profissional, deve saber o que está a fazer”, para a viagem não ser um suplício.
               
Uma vez na fronteira, foi esperar uma hora e tal numa fila. Disse-me o senhor polícia, com o meu passaporte na mão, que eu não precisava de ter esperado. Fixe. E ainda fui ultrapassado por pessoal que se metia na fila do lado e que o senhor polícia atendia, por alguma razão. Um destes grupos era constituído por 4 ou 5 cotas com o cabelo pintado de vermelho. Pensei ser devido a alguma seita ou assim, mas mais tarde disseram-me ser por causa do calor. Tenho as minhas dúvidas. Do lado do Paquistão senti a polícia mais simpática e definitivamente mais fluente no inglês. no Paquistão guia-se à esquerda também.
               
Passaporte aqui, passaporte ali, vai com a polícia até ali, assina a comprovar que recebeste protecção. Estava sentado lá numa espécie de quartel-general/sucateira quando conheci o MB, que me escoltaria até p’rai uns 400km à frente. Bela peça. Com ele caminhei dez minutos até à estação de autocarros, onde íamos comprar o bilhete. Ora eu tinha, inteligentemente, perguntado de antemão quanto custava o bilhete. 10 euros, disseram-me. 25 euros, pediram-me. Fiz lá um barulho, escrevi o número que me tinham dito, e o gajo baixou para 17 euros. Eu sabia que tinha de pagar o bilhete de autocarro de volta ao polícia. E o meu erro aqui foi que eu pensei que os 17 euros era com o bilhete dele. Passei o dinheiro para a mão do méne que lá trabalhava, e percebi depois que isso era para o meu bilhete. Depois o guarda pediu-me 13 euros para o bilhete de volta. Em primeiro lugar, eu duvido que ele pague bilhete, mas isso é um argumento que eu não posso usar, porque é uma assunção. Mas se o bilhete para a totalidade de o meu percurso é 10 euros para um paquistanês, o preço para dois terços (o percurso que o polícia ia fazer) não ia ser 13. Mas o gajo não voltou atrás e tive de lhe dar o guito. Sentei-me lá e fiz questão de dizer, com aqueles olhos penetrantes de quem, basicamente, ‘tá fodido, que eles me tinha levado o dinheiro todo. É que, meus caros, eu tinha trocado 50 dólares à entrada, e depois disto tudo tinha 2 ou 3 no bolso! Para o Paquistão! Ainda fiz mais um barulho quando perguntei a um local quanto ele tinha pago pelo seu bilhete, e o vendedor, todo chateado, queria o bilhete de volta, em vez de me dar o dinheiro que me “roubou”. O argumento deles era que eu era estranjeiro e o autocarro tinha de parar nos checkposts. Tretas pá! E se assim fosse eles não começavam a pedir logo 25 euros.
               
A cena dos checkposts. Pelo que percebi, a cada 200km ou menos que isso, os gajos vêm ver se eu ainda estou no autocarro, ou eu vou lá ao barraquito deles para assinar um papel. Eles já me esperam, porque os anteriores comunicaram. Suponho que isso é para, caso eu fosse raptado, sabiam entre onde e onde tinha sido. Barraquito mesmo. Isto pode parecer algo chunga de se dizer, mas a verdade é que muitas vezes sinto que andar por estes lado é como viajar no tempo. Os polícias apontavam os meus dados num caderno de linhas num barraco daqueles feitos de lama seca.
               
Ainda na estação, lá com os chicos-espertos, senti-me meio naquela durante uns 5 minutos. Mas rapidamente voltei ao ponto desejado. Paciência! Desafio aceite! Tenho 3 dólares para chegar a Islamabad, vambora! Tinha de chegar a Islamabad porque tinha visto na net que havia lá um Western Union, para onde me podiam transferir dinheiro de Portugal. Não são só palavras quando digo que preocupar-se não vale de nada. Até estava bem disposto dada a ridicularia da minha situação.
               
Mas eis que conheci um rapaz da minha idade no autocarro. Não me lembro do nome dele porque era difícil. Encetamos conversa, ele mudou-se par o banco ao lado do meu. Ofereceu-me chá, bolachas, comprou-me depois uma fanta e mais um pacote de bolachas e, solidário com a minha situação, ofereceu-se para me pagar o jantar, uma noite no hotel e pequeno-almoço para o dia seguinte, hoje. Incrível. Ele tinha-me dito que achava que havia bancos com VISA em Quetta, para onde me dirijia, e isso deu-me algum alento. Assim, deu-me 10 euros para passar bem o resto da noite.
               
O meu pai diz que não é preciso escrever tudo aqui, e que algumas coisas parecem mal e não sei quê. Eu discordo plenamente. Tão plenamente que o escrevo aqui. Tenho tido a sorte de conhecer pessoas que me têm ajudado em situações complicadas, e acho também importante partilhar com quem quer ouvir, a que distância as pessoas vão para se ajudarem umas às outras. Por outro lado, só me envergonho das coisas más que fiz a alguém. E nesta viagem, não creio haver nenhuma situação de que me envergonhe. Não pedi nada às pessoas senão boleias. É certo que ontem, naquelas dez ou mais horas em que pensava estar numa enrascada, equacionei pedir, literalmente, dinheiro, para chegar até Islamabad. E não acho em lado nenhum que isto seja “de ter vergonha”. É mais digno conseguir descer ao nível que precisamos para subsistir, ou falhar-nos a nós mesmos com medo de abandonarmos a nossa posição orgulhosa e de prepotência?
               
Felizmente, não precisei de nada disto. Fui à internet e falei com o meu padrinho, que me disse haver VISA no Paquistão. Confirmei. Porreiro. Hoje confirmei, mas só dei a tarefa como fechada quando vi o dinheiro na mão. Mas ficou algo precioso disto tudo. Gostei da maneira como reagi perante uma situação aparentemente muito difícil. E isso fez-me ganhar mais confiança em mim – sabendo que, estejam as cenas como estiverem, não tenho que me preocupar imensamente em mer perder no desespero.
               
Não curto quando pessoas falam de algumas características de outras pessoas com oalgo invejável ou “de sorte”. Que quero dizer com isto? Não perder a cabeça é uma característica que gosto de ter, e acho que é daquelas características que vem por opção. O pessoal dá desculpas de “ai eu sou cabeça quente” e não sei quê, e outras pessoas confundem isso com o charme da irreverência e explosão. É certo que há um certo charme de pessoas que fervem em pouca água, e apelidamo-las de apaixonadas e até dizemos, com orgulho, “ai eu sou muito latino”. Mas há campos em que isto se pode espelhar, e expressar, à vontade, e outros em que a opção devia ser outra. Porque é uma opção, sempre!
               
Após este choquezito que foram as primeiras horas no Paquistão, posso dizer que estou a curtir. Lembra-me a Índia. Não vi nada de especial, mesmo. Mas é mais aquela cena de ver uma cultura que não tem nada a ver com a nossa. Dei umas voltas por Quetta, conheci um méne de quem me amiguei e a quem quero perguntar (ai o facebook...) se quer ir comigo ao lago amanhã. Depois vim ao quarto onde estive um par de horas no chill. Acho que vou ficar pelo Paquistão duas ou três semanas. Não tenho nenhuma data a cumprir a não ser estar na Índia no dia 6 de Maio para apertar a vista ao redor do meu Kidus.
               
Lá p’rás sete fui comprar dois livros e jantar. Comprei o 1984 do Orwell e uma espécia de biografia do Buda, que já comecei e de que estou a gostar. Jantei uma pratada de uma cena que envolvia miolos de vaca, com um pão (daqueles que parece a base e uma piza), uma saladita e bebi três chás do mais saboroso que já experimentei. Paguei um euro e vinte e cinco por tudo.
               
Contrariamente ao Irão, aqui o pessoal já nota a minha estranjeirisse. Mas não me chateiam muito. Não há daqueles putos a seguirem-nos trezentos quilómetros, como imaginava. O caixa do restaurante e o cota ao seu lado travaram conversa comigo. Disseram que estavam na dúvida se eu era muçulmano, e decidiram perguntar quando eu viesse. O cota tinha já estado em Portugal, em 1976, e em oitenta e dois países na sua VIDA, tendo voltado ao Paquistão em 1980. Quando disse que não era muçulmano e perguntaram se era cristão, disse que sim. É mais fácil do que dizer que sou ateu, ou agnóstico. Contrariamente ao que se pensa, o Corão respeita os judeus e os católicos. De facto, todos os que seguem os seus textos sagrados, como a tora ou a bíblia, respectivamente.
               
Voltei para o hotel e estou a fazer cenitas. Tenho internet muito precária de algures do lado de lá da parede, um luxo que nunca antecipei!

23h52-4ª-6-4-11
Quetta

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