domingo, 24 de abril de 2011

Gilgit, Paquistão

Estou no meio das montanhas. O autocarro balança a cada dez segundos, ora para a direita, ora para a esquerda, quase me esmagando no processo. É de noite, já não vejo os apelativos cenários de há um par de horas. Já não vejo as montanhas ao fundo, cheias de neve, nem os riachos ou os putos a jogar cricket no campo. Pela janelita aberta chega-me o Vento, que se amassa gentilmente conta a minha face, trazendo-me mais uma pista, desta feita olfactiva, acerca de onde estou. É que às vezes é fácil esquecer. Contornávamos uma curva ali atrás e parecia-me nitidamente o caminho para a Serra da Freita. Foi uma sensação brutal, fantástica, e instalou-se em mim uma alegria e satisfação inconmensuráveis. As memórias do que quer que tenha vivido aliada ao exotismoe da criação de novas. Estou a caminho de Gilgit, no norte do Paquistão.

Acabei por me desarrepender de ter escolhido o hostel do Malik. Está certo que esperava aquilo cheio de viajantes a caminho da Índia, e isso não se ter proporcionado foi algo que me deixou com imediata vontade de encontrar um couchsurfer que me albergasse. Contudo, conheci o Vinn e a Gisela, um casal luso-belga que fez com que valesse a pena ter lá passado uns dias. Em primeiro lugar, eram muito porreiros. Em segundo lugar, se não fosse pela extensa descrição do Vinn do norte do país, agora devia estar na Índia. Responsabilizo-o pela minha mudança de planos. Fixe.

No domingo fui ver mais cenas. O número de pessoas na rua era estonteante. Era difícil caminhar numa linha recta por mais que alguns segundos. Tinha o mapa na mão e sabia onde queria ir – para o forte. Não sei bem o que se estava a passar, mas havia milhares de pessoas na rua com bandeiras verdes, algumas a dizer “we love peace”, pessoal a gritar “não-sei-quê não-sei-quê não-sei-quê Paquistão” vezes sem conta e uma fila interminável para o Minar-e-Pakistan (um parque com um menir no meio). Ontem , quarta, perguntei ao Asim e ele diss

tenho de parar de escrever porque está impossível com as condições da estrada

Estou num dos hostels mais fixes onde já estive. Pela conjuntura global. O dono da casa, o Qayum é um senhor. Que homem espetacular! Um cota de cinquenta e cinco ou cinquenta e seis (não sabe a sua idade ao certo) que não sabe ler mas que já andou a viajar pela Europa por nove anos, de 1975 a 1982.
   
O Vinn e a Gisela tinham-me falado dele e aconselhado a passar aqui uns dias. Assim, hoje cheguei, e após uma caminhada de quase uma hora sob o sol esturrador, cheguei cá. Falei em espanhol, porque sabia que ele tinha vivido em Ibiza vários anos e essa estabeleceu-se como a língua de comunicação. Demos um abraço e sentamo-nos à conversa. Entretanto a sua mulher trouxe comida e depois ainda comemos uma sanduíche. O hostel é uma casa grande e muito porreira., num terreno com um relvado mdoesto mas bonito e uma piscina para se encher daqui a um mês. Não tem sinal a dizer “Hostel” ou “Guest House” porque ele não está assim tão interessado em publicidade. “Este hostel é mais para pessoas especiais”, diz-me, “Alguém vem cá, diz a um amigo, depois esse amigo diz a outra pessoa... e vai-se fazendo assim o negócio”. Numa olhada no seu livro de check-in noto que tem um hóspede a cada dez dias, mais ou menos.
   
Mandou-se para a Espanha em 1975 sem falar nem espanhol nem inglês. Trabalhou como condutor, como cozinheiro, e a dada altura entregou-se à VIDA de hippe, sobrevivendo vendendo bijuteria e cenas afim na rua. Viveu na Suiça, amores aqui, desamores ali, e estórias na bagagem e uma experiência, imagino, fundamental para ser aquela pessoa que muito calmamente me falava, do outro lado da mesa, entre algum fumo que se degladiava com a aragem quente.
    “Felizmente, não devo nada a ninguém, não pago aluguer, fui eu que construí isto, ao longo de dezoito anos, por isso o dinheiro, apesar de pouco, não faz assim tanta falta.”
    Depois de comermos fui descansar um bocado. Estava super relaxado e bati uma sonequita até que ele me chamou para ir com ele. Era para eu ir à internet, mas acabei por ir com ele para a sua loja de bugigangas e cenas várias, onde fiquei à conversa com um seu familiar, o Yasir, enquanto os outros penduravam no tecto do pequeno prédio um sinal a publicitar a lojita.
   
O Yasir é um rapaz de trinta anos actualmente à espera que a mãe lhe arranje uma noiva. “Os jovens paquistaneses têm muita frustração, porque as suas necessidades são frustradas”, diz-me, no meio de uma conversa de teor sexual. Agitava frenteticamente o joelho direito enquanto fumava o seu cigarro, e a dadas alturas deixava-me confuso acerca do seu interesse em viver em Giglgit para sempre. As suas palavras iam nessa direcção, mas às vezes havia um ou outro trejeito, uma ou outra crítica, que me deixava na dúvida. “Eu adoro isto! É a minha cidade, onde pertenço. Não posso escapar para lado nenhum por causa destas montanhas, e adoro isso!”, dizia. Quando lhe perguntei o que sentia acerca da sua mãe lhe estar a arranjar uma mulher responde-me dizendo que é assim que as coisas são. Os pais gostam de o fazer, porque sentem a responsabilidade e a certeza de que vão encontrar a melhor opção. “A minha única condição é que tenha educação”, diz, “para poderem acompanhar em conversas e absorver a informação”. É justo. Sabia isto de teoria mas nesta viagem confirmei que, apesar de não ser uma variável determinante e exclusiva, a educação das pessoas tem muito que ver com a maneira como olham o mundo. Digo que sabia isto de teoria porque em Portugal isso já não se passa na nossa geração com frequência. Não há pessoal que deixe a escola aos catorze anos e não há, sem dúvida, pessoal que nunca foi à escola de todo. Falo das gerações mais novas.
   
Apesar do seu critério de educação ser justo, esta cena toda dos casamento arranjados faz-me muta confusão. Muita gente, até pessoal mais aberto e sofisticado, não se importa com isso, de tão enraizado que está. E acontece tão mais do que eu alguma vez imaginei! Na Turquia não me parece que aconteça, mas nas famílias mais conservadoras as famílias têm o poder de veto. Daí para sul ou este, é a razia. O Líbano é o único país onde não calhou falar disso com locais, mas na Síria, Iraque, Irão, Paquistão, é o pão nosso de cada dia para muitas, muitas almas.
    Noutro dia publiquei um comentário acerca da teoria de que a legalização do aborto nos anos 90 nos EUA está relacionada com a diminuição, para metade, dos crimes nessa zona. Pois o número de bebes indesejados diminuia. Com esse número diminuia também, certamente, o número de pessoas que cresciam sem condições sócio-económicas estáveis, ou de pessoas que tinham essas condições mas tinham também a frustração constante de pais que o foram demasiado cedo. Ora imagino, também, em que medida a prática de casamentos arranjados estará relacionada com a qualidade de VIDA e felicidade, no geral. “E aqui é muito difícil encontrar mulheres,... por isso quando as mães encontram alguém, isso ajuda”, dizem-me. Quer dizer que parece haver um problema por debaixo de outro problema, como de resto é costuma acontecer. Quer isto também dizer que uma mudança teria de, necessariamente, implicar outras mais drásticas mudanças.
   
Depois disto tudo era para a internet mas vum para casa com o Qayum e o seu filho, e jantámos ali no alpendre, ovos mexidos com muita coisa. Muito bom. São dez e trinta e quatro e relaxo agora no meu quarto, a ouvir Angus & Julia Stone. A luz já foi, agora só amanhã.
   
Mas falava de Lahore, antes da interrupção. No domingo fui ao forte. Todavia, antes de lá chegar, tive o meu momento estranho do dia. Um parente estava sentado numa carpete enrolada a fumar um cigarro, e quando cruzámos o olhar, ele chamou-me. Como sempre, eu fui. O gajo chegou-se para o lado e convidou-me a sentar-me, batendo com a mão na carpete. Assim o fiz. A dada altura o gajo começa a tocar-me na perna e a apertar, enquanto diz qualquer coisa. Bem, o gajo acaboupor me fazer uma massagem p’rai de vintes. Comigo sentado, assim meio de lado, teve os seus momentos meio estranhos, teve. Mas, percebi mais tarde, é a cena deles. Especialmente no parque de estacionamento de camiões, vi vários camionistas às massagens uns aos outros. Depois no fim não percebi se ele queria dinheiro ou não. Estendi dez rupees, e não percebi se ele queria mais ou não. Acabei por não dar nada e pus-me a caminho.
   
O forte é enorme, parte da Unesco, e completamente desprotegido. Isto é, pode-se andar por todo o lado, ao passo que, parece-me, uma boa parte daquilo ia estar atrás de uma linha ou de um vidro. Não tanto pelo pessoal poder estragar, mas porque parece estar em reconstrução. Há muito tempo. Mas não está. Está é a lentamente cair, se calhar.
   
Voltei para o hostel e a Gisela estava sentada no terraço. As cadeiras e mesas tinham desaparecido, para dar lugar a uma carpete onde o vinha um grupo tocar música sufi. Tínhamos descoberto no dia anterior sermos ambos portugueses, ainda que ela tenha crescido na Bélgica. O Vinn, seu namorado, belga, chegou passado um bocadito e estivemos a conversar um par de horas. Malta fixe. Estavam um bocado desiludidos com os viajantes que tinham conhecido até então. “Tu é das primeias pessoas que é fixe”, diziam. E eu percebo. Falavam de um excesso de auto-confiança que dota muitos viajantes de uma certa arrogância. Não acho que seja necessariamente exesso de auto-confiança, mas já senti o que me descreviam. Como já disse aqui há tempos, há pessoal que pensa que viajar é a cena mais fixe do mundo, e que isso faz deles estrelas. Não são todos, claro. Falo de uma parte significativa apenas o suficiente para ser referida. Depois, dentro da fixeza de viajar de que se sentem donos, há ainda a maneira como a sua maneira de viajar é que é a mais cool. Tipo boleiantes que olham de lado para quem anda de comboio. Ou viajantes de meios de transporte terrestes que olham de lado para pessoal que apanha aviões.
   
Acho que a cena mais importante é não se esquecer que a nossa maneira não é necessariamente a melhor maneira para toda a gente. Porque eu próprio também considero que certas formas de viajar não são necessariamente viajar. Mas não me posso esquecer que isso é para mim. E conquanto proporcione felicidade e auto-satisfação, o pessoal deve fazer o que lhe entender, do modo que entender. Para mim andar à boleia também é mais fixe do que andar de comboio. Aliás, tenho o meu ranking de fixeza viajante. Andar a pé, de cavalo, de bicicleta, à boleia, de transportes terrestes, de barco, e finalmente de avião. No futuro teleporte será a seguir ao avião.
   
Além disto, e recorrendo também a um exemplo que referiram, muitos viajantes têm um certo asco de receber dicas de outros viajantes. Como se fosse obrigatório um gajo descobrir tudo sozinho, confiando apenas em locais, para se achar um valentão bacano. São cenas.
   
A noite sufi foi fixe. Um grupo de músicos a tocar no dormitório das raparigas. Não pode ser no terraço porque a mãe de um vizinho tinha morrido e era mau um gajo estar a cantar, e eles a chorar. Achei interessante e positivo este respeito.
   
No final, Lahore acabou por ser uma cidade fixe. Tem vistas porreiras, uma intensidade que pode ser stressante mas também radical e estimulante. E foi fixe ter conhecido o Vin e a Gisela. Uma cena: na Bélgica quem trabalha mais que dois anos numa empresa pode tirar, uma vez na carreira, um ano para ir viajar ou fazer o que lhe apetecer, a ganhar mais de quinhentos euros por mês, e ter o emprego à espera quando voltarem! Quem trabalha no governo pode tirar um ano a cada dez anos de trabalho! Delírio!
   
Isto sim seria altamente! E mesmo... tenho pensado muito nisto. Acho que um bom equilíbrio na minha VIDA seria viajar quatro meses e ficar oito em Portugal, assim mais ou menos. Mas além do facto que o único emprego que se possa coadunar com isto é o de escritor (nas minhas perspectivas), há outras partes que têm de se ter em conta. Com um filho em crescimento, por exemplo,...

Na terça apanhei o autocarro de volta a Islamabad, onde cheguei nessa noite. Fui jantar com o Asim e um amigo dele, e passei o serão, bem como o resto do dia à procura de soluções para o problema relacionado com ir cem por cento de terra.
   
Apanhei o autocarro para Gilgit, onde me encontro, na quinta. No final sentia-me como se tivesse sido violado por oito gorilas numa altura de cio. Não estava fácil, até a coluna me doia, não era só o cu! As vistas até aqui foram fenomenais. Amanhã vou à net, e depois dar uma volta. Acho que não posso ver nada de super fixe aqui sem pagar, por isso vou ficar no relax, a ler, dar uma volta. Essas cenas de quem não tem nada que fazer!

22h57-6ª-22-4-11
Gilgit, Paquistão

PS – Estou há dezassete dias no Paquistão.

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