Tinha seiscentos e trinta quilómetros até Madrid, era muito difícil lá chegar, mas ia tentar. Estava disposto a tudo. Quanto mais perto de casa, mais ansioso estava por voltar. E por isso, estava a ver-me a dormir essa noite numa estação de serviço – outra vez. Mas que se lixe, um gajo arrisca-se a chegar o mais longe possível e sabe o que isso acarreta.
Apanhei o metro para a Praça da Catalunha, e de lá um comboio para Castelbisball. Ainda demorei um pedaço a lá chegar. Uma vez aí, foi seguir as instruções que tinha visto na net, e caminhar p´rai três quartos de hora até chegar a uma estação de serviço já na autoestrada, que tanto ia para o oeste como para sul.
Quando cheguei estava lá um casal também a boleiar. Ele da Austrália, ela da Bélgica. Mas iam para o sul, por isso não estávamos em conflito. Se não eu esperava. Ficámos lá +rai meia hora, até que reparámos que muitos carros vinham lentamente, mas não paravam. Fomos dar uma espreitadela e pelos vistos havia uma zona de restauração com mais carros do que a gasolineira onde nós estávamos.
- Vocês estavam aqui primeiro, por isso podem escolher... Querem ir para lá ou ficar aqui?
- Ficamos aqui... – porreiro, era o que eu queria.
- Porque é que não levas a camisola de Portugal? Pode ser que alguém reconheça e simpatize – tinha dito o Albert, um par de horas antes. Assim o fiz.
- Você sabe, eu vi sua camisola, vi que era português, e cria-se logo um clima, você entende... – disse o Jairo, mais tarde, a olhar para mim, no banco de trás. É que mal cheguei à zona de restauração abordei logo o rapaz de um casal. Ele falou comigo em português brasileiro, disse que por ele não havia problema, tinha só de confirmar com a sua namorada. E não só não houve problema como também andaram uma distância espetacular! Deixaram-me fora de Saragoça, duzentos e tal quilómetros depois. Fomos sempre à conversa. Um casal muito simpático, ela francesa, ele brasuca. Ele passou meio ano em Portugal a viajar, vive agora em Barcelona, onde a conheceu. Sonham mudar-se para o Canadá. Despedimo-nos como um abraço, algo que vinha a acontecer com alguma frequência com o pessoal que me dava boleia, e eu lá fiquei.
O problema com aquela estação de serviço é que era a única, e dava para os dois lados. Não era bissexual nem nada, simplesmente era um sítio onde o pessoal que ia para Barcelona também usava. E pelos vistos, tirando os ocasionais couristas, toda a gente ia para Barcelona. Basta dizer que cheguei lá à tarde e saí de noite. Por isso estava certo de que usaria a minha mochila como almofada nessa noite.
Quando o sol já se tinha mudado para outras paragens, fui dar uma volta a investigar um bocado, ver se havia outros sítios mais propícios. Encontrei, ali num canto à saída do que parecia ser um parque de estacionamento para camiões, um cota com ar de peregrino, ou vagabundo, algo por aí. Tinha
P´rai cinquenta anos, uma camisola de malha, um lenço ao pescoço e calças de fazenda. Nas mãos um cartão com algumas terras portuguesas e tinha um cajado também. Perguntou-me em espanhol, mas com sotaque português completo, de onde é que eu era, e comecei logo a falar em português.
- Você sabe se os camionistas também andam à noite? – perguntei-lhe.
- Você não anda muito à boleia não é? – perguntou também. Senti-me meio incomodado com aquele comentário. O que é curioso, parece que atacou o meu ego e eu, infantilmente, senti a necessidade de dizer que sim, até andava, e tinha feito não sei quantos mil quilómetros à boleia. Ele depois explicou-me algo que eu já sabia, acerca do facto dos camionistas terem um número de horas que podem conduzir por dia e não sei quê. Ele já tinha arranjado uma boleia até Burgos mas ainda assim procurava algo que o pudesse levar mais longe. Pareceu-me que el já tinha interpelado toda a gente ali, por isso não vi grande propósito em ficar. Ele atravessou a estrada comigo.
- Eu? – disse, quando lhe perguntei qual era a cena dele – Eu sou vagabundo. Ando sempre por aí e às vezes, quando não tenho que comer, volto a Portugal. Às vezes peço dinheiro também, não tenho vergonha nenhuma, é assim – respondeu. E eu reparei como, talvez incoerentemente, não senti nenhum stresse com o gajo pedir dinheiro. Isto porque nunca dou dinheiro só por dar. Dou quando alguém está a tocar música ou a prestar um serviço qualquer, mas não concordo muito com a cena de incentivar à dependência de outros. Está certo que me deram algum dinheiro nesta viagem, mas nunca o pedi. Pedi uma vez, no Paquistão, que me dessem algo para comer, mas não pedi dinheiro. E por isso mesmo, por dar dinheiro não seja uma coisa na qual eu embarque, estranhei não estranhar a cena do gajo, e até pensei em dar-lhe dez euros. Talvez por termos algo em comum, o espírito de andarilho, tenha visto as cenas de uma luz diferente, o que só vem acrescentar à noção da relatividade de leis e correctos e errados. O absolutismo é algo em constante decadência, e assumir que há uma visão para tudo é a maior falácia que podemos cometer.
Estávamos os dois à porta do restaurante onde eu tinha passado a tarde toda, quando sai um homem dos seus trinta e tal anos. Pergunto-lhe se vai na direcção de Madrid, mas já sem grande entusiasmo. Ele diz que sim, eu pergunto se me pode levar, e ele diz que tem de esperar pela mulher para ver o que ela acha. Espero uma grávida a sair e vejo aí o meu bilhete para mais uma noite ao relento. Sei lá, as grávidas têm mais aquele instinto ali a bombar que as faz querer proteger a famiília como uma chita. Mas nada disso.
- Vocês são dois? – pergunta-me o homem, ainda meio desconfiado.
- Não, sou só eu – respondo. E segui. Fomos sempre à conversa. Sei que o pessoal fica sempre impressionado com o meu trajecto e vou contando as cenas para fazer com que lhes tenha valido a pena dar-me boleia. Não só para os deixar bem, mas para aumentas as probabilidades de levarem a próxima pessoa que lhes peça boleia.
Eles iam para Valladolid, mas iam ficar a caminho para dormir. Estavam com pena de me deixar assim à noite, à chuva, numa estação de serviço, mas eu disse-lhes que não havia problema nenhum, já estava preparado para isso. Um bocado admirados e confusos com a leveza com que enfrentava não saber nada acerca do meu destino, lá me deixaram, não sei antes tentarem, por mim, pedir a um ou outro que me levasse. Saí do carro, caminhei para a gasolineira.
- Você vai para Madrid? – perguntei, em espanhol.
- Vou – respondeu o camionista, meio mal encarado.
- Posso ir consigo, por favor?
- Mas que vais fazer para Madrid? – perguntou, com cara de gozo. Lá expliquei que estava a caminho de Portugal e tal, e que Madrid estava a caminho. O gajo estava no gozo comigo, só isso. Na boa. Disse que me levava, e para eu esperar à frente do restaurante. Todo contente, fui a correr para dizer aos qure me tinham acabado de deixar e que até estavam um bocado preocupados comigo. Mas já tinham ido. Eram dez da noite, lá +rá meia noite ia conseguir chegar a Madrid, incrível. O cota lá apareceu outra vez, pagou-me um café e um moscatel, e seguimos caminho.
- Tu que fazes? – perguntou-me, já no camião. E quando eu disse que era psicólogo, senti que o gajo viu ali, como outros, uma oportunidade para falar das suas cenas. Perguntou-me primeiro com quem tinha trabalhado e disse-lhe que durante nove meses em Portugal e meio ano na Noruega, tinha trabalhado com toxicodependentes. Quando me perguntou qual achava ser o problema de toxicodependentes, dei-lhe a minha opinião pessoal e profissional. Que na grande parte das vezes uma dependência extrema não é necessariamente o problema, mas o sintoma de outros problemas latentes. Isto é, não basta abordar o gosto que se tem por uma grande moca e tudo mais, mas o que é que levou àquilo.
- Então vou dizer-te uma coisa... eu... fui para a tropa aos dezoito anos de idade. Até lá, nunca tinha fumado um charro na VIDA. Nunca tinha tocado nisso. Mas aos dezoito anos, meti-me num barco para Ceuta, e experimentei. E desde então, fumo um ou dois charros todos os dias pá... que é que tu achas disso?
- Pá eu não acho que isso seja necessariamente um problema, porque não ponho a ganza na mesma qualidade das outras drogas. Acima de tudo é um problema de é algo que tem um efeito no teu dia-a-dia, na tua rotina, no teu estar, no que fazes ou deixas de fazer. Não há provas de que a marijuana faz mal à saúde, – e não há – pelo menos não faz pior do que um cigarro normal. As dependências que causa não são físicas mas psicológicas...
- Pois mas a mim faz-me uma diferença... no meu dia-a-dia, ou como quer que tu o chames... porque todos os dias tenho de dizer à minha mulher que vou visitar a minha mãe, ou que vou ao café, ou que vou ao caralho, só porque tenho de fumar um charro – disse-me.
- Isso talvez se prenda com o facto da tua mulher se deixar influenciar pelo facto de ser ilegal. Às vezes, e sem ofensa para a tua mulher, o pessoal é preguiçoso... não quer pensar nas cenas a fundo então deixa-se ir com a opinião geral, com a sociedade ou pela lei... É ilegal, então é mau e devo condenar isso, é o que o pessoal pensa logo... – e tenho isto como verdade. Porque se perguntarmos a alguém porque é que a ganza é ilegal, o pessoal vai dizer cenas como “porque é droga” ou algo assim. Iá, pois é. Mas o álcool é droga e mata milhões. O mesmo se passa com o tabaco. Ao passo que nunca houve uma morte registada devido ao uso de marijuana. E acho uma hipocrisia de topo o pessoal que vem com estes couros mas depois anda cheio de antidepressivos, medicamentos para dormir e drogas que tais...
- Pois, era mais fácil se eu pudesse fumar à frente dela. Mas o erro foi meu... desde o início que escondi, e depois era tarde demais...
- Já pensaste em abrir o jogo? Tu próprio já disseste bastantes vezes que a tua mulher é uma pessoa inteligente e formada, se calhar nem tem problema com nenhum. Se lhe disseres a verdade, se lhe mostrares que és a mesma pessoa antes e depois de fumares, – como eu sei que era, porque esta conversa foi tida enquanto ele fumava um charro – pode ser que ela perceba. E pode ser que prefere que passes mais tempo em casa, em vez de estares a inventar desculpas para sair de casa todos os dias... já pensaste nisso? – ele já tinha pensado nisso.
O Eduardo era um gajo muito porreiro, boa gente, mas daquelas com um temperamento difícil. Eu percebi isso pela maneira como ele amaldiçoava outros condutores só por existirem, e ele também fez questão de mo dizer. Levou-me direitinho a Madrid, na periferia onde os camionistas passam a noite. Estava mesmo preocupado em saber onde eu dormiria, acho que se não tivesse onde ficar podia ter ficado na cama de cima do camião. Na verdade não tinha sítio para ficar, só pensava que sim. É que quando passei a tarde toda na estação de serviço nesse mesmo dia tinha tido uns minutos de internet e tinha visto que tinha tido um pedido aceite no couchsurfing. Mas não abriu e não consegui ver mais nada além do “maybe”. Soube, mais tarde, que era para Saragoça, por isso nada feito.
- Ainda vais escrever umas páginas sobre mim no teu livro Pedro, não vais? – perguntou-me. Tinha-me já perguntado se eu fazia um diário da viagem, e eu tinha-lhe dito que sim e que gostava de partilhar as minhas experiências com o resto do pessoal.
- Vou Eduardo, vou... tu és um bom moço...
- Foi a melhor boleia que apanhaste ou quê? – perguntou, com um grande sorriso.
- Foi das melhores, sem dúvida – disse, com sinceridade. É que gostei da forma como aquele gajo com uma carapaça dura se abriu e fez questão de me ter bem. Quando chegámos à Merca-Madrid, ele apontou-me onde tinha de apanhar o autocarro para o centro de Madrid. Eu saltei para a estrada, ele chamou-me e deu-me uma casa. Na saca tinha pão, chouriço, presunto, sardinhas em lata e patê. Que cena, curti bués.
Despedimo-nos e apanhei o autocarro para o centro. Não tinha sofá, mas tinha internet no autocarro – cool! Fiz umas sandes, que comi enquanto procurava por um hostel na internet. “One Malasana”, pareceu-me bem. Barato e bem cotado no hostelworld. Siga...
segunda, dezasseis e treze, vinte e oito de novembro de dois mil e onze
Portalegre, Portugal
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