São onze e vinte e seis da noite, e estou numa estação de serviço completamente vazia na Alemanha, fora de rota. Cometi um erro há pouco, e depois outro pessoal cometeu um erro por mim, e parece que vou passar aqui a noite, sentado, ou a dormir debruçado sobre esta mesa de padrão azeiteiramente africano. O meu erro foi não ter sido mais veemente com aquele grego a dizer que queria sair naquela estação de serviço. Tinha dito, mas pelos vistos o gjao não tinha percebido, e quando eu percebi que ele não tinha percebido, não dei três saltos e o gajo seguiu sempre em frente. Depois fiquei na próxima estação de serviço a morrer de frio duas horas, a perguntar ao pessoal onde ia, e a levar nega atrás de nega. Até que apareceu o Dan, alemão em erasmus na Holanda, que esperava os seus amigos. Levaram-me, mas esqueceram-se de me deixar na estação de serviço antes daquele cruzamento, e olha, cá estou... Já estou por tudo. Há pessoal que vai para a Áustria. Fica para o outro lado, mas se me aceitarem vou, que se lixe, sempre é mais um pedaço num carro onde, quem sabe, posso dormir um bocado. Chegava lá e amanhã via como fazia. Mas agora não passa ninguém.
Assim aqui me quedo, a ouvir “Somedays” da Regina Spektor, não exactamente em êxtase, mas sem sentir pena de mim próprio. São cenas. Nem sempre tudo corre bem. Às vezes, como já me aconteceu nesta viagem, corre tudo incrivelmente mal, mas que é que um gajo vai fazer? Deixar de fazer cenas, deixar de mergulhar no desconhecido? P’ra quê, pergunto-te eu.
Tenho pensado muito nisto... Às vezes acho que o pessoal lê tudo ao contrário. Mas claro que... bem, claro que posso ser eu a ler tudo ao contrário. A VIDA é algo precioso, porque à partida é a única que temos. Deixando niilismos de lado e questões metafísicas lá fora, a VIDA que temos não é um test-drive ou parte de um plano infinito. Mas ainda que o seja – não o podemos saber com certeza, por isso n:ao creio que valha a pena vivê-la como tal. Deveríamo-la viver como se fosse a única. E como sendo fugaz – isto ninguém mo pode negar.
Ora então, porque é que acho que o pessoal lê as cenas todas ao contrário?... Porque o pessoal ganha uma pseudo-consciência disso, e tenta proteger-se ao máximo. Não se aventura sobremaneira porque da aventura pode vir a desventura. E deus nos livre... Achamos que a nossa VIDA é tão preciosa que não a podemos pôr em risco de forma nenhuma. E mais, e fundamentalmente, vemos riscos onde não os há, sem tirar nem pôr. Queremos fazer cenas, mas arranjamos um monte de desculpas, e são só palavras com que populamos o nosso ambiente. Abrimos um armário e sacámos da desculpa do “ai não tenho tempo”. Abrimos uma janela e o Vento sopra a desculpa do “ai não tenho dinheiro”. E passa assim tudo ao lado.
Acho que dá para perceber que falo especificamente de viajar. E não é que eu ache que isto de viajar faz toda a gente feliz da mesma forma. Não tem nada a ver com isso. Baseio-me apenas no que ouço vezes sem conta, quase de cada vez que partilho com alguém a minha estória. Ouço estas desculpas. Bem, ou o pessoal me está a mentir e na verdade não lhe apetece verdadeiramente fazer algo semelhante, ou então está a sério, e as desculpas são inegáveis. É que se não é a nossa cena, não é a nossa cena. Tenho todo o respeito por quem segue a sua felicidade, seja a viajar, seja a brincar todo nú com um papagaio no Monte da Caparica. Pá mas que seja algo que se almeja e que se faz por alcançar.
Não há nada pior que o medo de falhar. O medo de falhar é aquele monstro peludo que não nos deixa abrir a porta. Um gajo por mais que se esforçe não se lembra que é tão fácil quanto dizer as palavras mágicas “Porque não?”. Seja em viajar, seja naquele emprego que era mesmo fixe mas que não é tão respeitado como o de um médico, seja no amor. Antecipámos falhanços e rejeições, vivemo-los de antemão e isso dita o nosso destino.
Um gajo vai tropeçar, claro que vai. Um gajo vai viajar e é preso, um gajo despede-se para tentar o emprego de sonho e fica de mãos a abanar, um gajo diz-lhe que a ama e leva uma risadinha condescendente. Mas e daí pá? É a VIDA. É neste momento devíamos ler a realidade de uma forma que nos fizesse perceber que ao menos tentámos pá. Ao menos entregamo-nos e olha, correu mal... Mas o respeito por nós mesmos é algo que ninguém nos pode oferecer ou comprar. O respeito de sabermos que seguimos o nosso coração dá-nos alento para nos levantarmos e, bem, tentarmos de novo.
Acho que é disto que a VIDA precisa de ser feita. Tentativa e erro, acerto, seja o que for. Eu já cometi inúmeros erros, como toda a gente, como tu. Mas de certa forma são esses erros que igualmente atribuem ao nosso carácter aquilo que nos define, aquilo que nos transforma num ser sem igual. Nem molde nem sistema, tudo é teu como tu és se assim o quiseres.
Arrisca...
vinte e três e quarenta e seis, sexta, vinte e um de outubro de de dois mil e onze
algures entre Nittel e Langenargen (Alemanha)
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