terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Epílogo


No dia oito de Novembro, numa terça-feira, deixei Portalgre com o objectivo de chegar a casa. Tinha à volta de trezentos quilómetros pela frente, num país nem sempre fácil de boleiar como é Portugal, e numa tarefa particularmente difícil, porque de Portalegre a Vale de Cambra é preciso mudar de autoestradas. À conta disso não estava à espera de muito sucesso, mas queria tentar na mesma. Apesar da minha viagem ter já, de certa forma, terminado, custava-me pagar vinte e tal euros por uma viagem que podia, potencialmente, fazer de graça.
               
Não sabia que chegaria a casa com uma facilidade extraordinária. Talvez outras forças me tivessem levado debaixo da sua asa, porque, sem saber, precisava de estar em Vale de Cambra o mais cedo possível. Não sou muito místico nem acredito nessas forças, ou coincidências, mas o que é certo é que é impossível pensar no que aconteceu sem pensar duas ou três vezes...

A Graciete ia levar-me a um sítio ali fora da cidade onde talvez fosse fácil. Quando ainda para lá nos dirigíamos vi um camião estacionado na berma da estrada, ligado, e o camionista cá fora, a dar uma olhada na carga de cortiça. Estacionámos, dei uma corrida e perguntei-lhe para onde ia.
               
- Eu vou para o norte – respondeu-me o homem gordinho de bigode.
- Será que não me pode levar consigo?
- Tu vais para onde? – perguntou.
- Oliveira de Azeméis, São João da Madeira, por aí...  – respondi, esperançado. E ele acedeu. Assim, sem mais nem menos, apanhei uma boleia de duzentos e setenta quilómetros, até São João da Madeira. Incrível.
               
A viagem foi tranquila. Às vezes apetecia-me dormir um bocado mas o senhor estava sempre a falar. ‘Tá-se bem, não há problema. Era um senhor da velha guarda, simpático, e era camionista há trinta e oito anos, tendo já estado envolvido em dois acidentes fatais, quando carros de passageiros (felizmente só com uma pessoa) se meteram na sua faixa e colidiram frontalmente. Parámos para almoçar uma horita depois de sairmos, e cheguei a São João lá                 +rás seis e tal. Estava a chover mas eu tinha um guarda-chuva que tinha encontrado em Langenargen, na Alemanha. Estava contente. Pertinho de casa e fascinado com a sorte que tinha tido.
               
Não sabia se deveria ir para a gasolineira ali à frente e tentar a boleia até Vale de Cambra, se ir até casa da minha avó e ligar aos meus pais ou fazer o mesmo de casa da minha tia. Decidi ir caminhando até casa da minha tia, e ia perguntando ao pessoal que estava estacionado se porventura não iria até Vale de Cambra...
               
- Nós somos de Vale de Cambra sim, mas o nosso carro está cheio, é só de dois lugares...  – respondeu uma senhora com cara de simpática, quando já estava a chegar àquele ponto onde não perguntaria mais, porque acabava o paraque de estacionamento.
- Ah, ok, não há problema, obrigado.
- É o Pedro? – perguntou, para meu espanto.
- Sou... como é que sabe?
- A minha colega acompanha as suas viagens na internet! – respondeu, com um sorriso, dizendo outra vez que o carro estava cheio. Entraram no carro e partiram. Eu continuei a caminhar e não tinham passado mais de dois minutos quando apareceram outra vez, depois de dar a volta.
- O meu marido leva-o lá num instante! – disse a senhora, ao sair. Que cena! Andei à boleia pelo mundo e a minha última boleia deixou-me mesmo, mesmo à porta de casa.

Nessa noite, em vez do jantar que esperava com a minha família, fomos para o Hospital de Oliveira de Azeméis. É poético, de certa forma, sendo que andei perdido pela Eurásia, a dezenas de milhares de quilómetros de casa, e quando voltei fui ter ao sítio onde tinha entrado no mundo – porque nasci nesse hospital. É pena é que não fui por uma boa razão. A minha avó tinha dado entrada com dores de costas e alguns vómitos. Morreu passados três dias. E por isso digo que, apesar de não acreditar em forças maiores ou cenas assim, é incrível, porque parece que esperou por mim para se despedir.
               
Isto fez com que aquele eu que andava ainda perdido por estradas europeias tivesse de se teleportar num segundo para o meu corpo. Voltei a estar inteiro dentro de mim, porque não tinha opção. Não me podia dar ao luxo de esperar por mim, pois precisava de estar completo para as pessoas que tinha em casa.

E passou. Passaram os tumultos sentimentais da morte da minha avó, e dei por mim de volta. De volta completamente, a minha alma toda por cá, ainda que os meus sonhos por aí. Num momento comecei a sentir as pressões e obrigações de procurar um trabalho, ser isto, ser aquilo, fazer a barba, e esses imperativos que agora pouco significam para mim.
               
Quero fazer as coisas por mim, não porque mo exigem. E quando mo exigem, ou o dão a entender com constantes palavras, sinto-me como um tigre de pernas partidas. Quero viver pá. E isso não quer dizer que não possa ter um emprego para o fazer. Claro, percebo que preciso de dinheiro para comprar coisas importantes, como comida ou um tecto, ou para ir daqui ali. Ainda que escapando ao consumismo, um gajo precisa de dinheiro, eu entendo isso, não sou parvo. Mas não quero criar necessidades, não quero viver debaixo de empréstimos, obrigações que não me pertencem ou esperanças depositadas num futuro que não virá. Quer ser como quero ser, e isso pode passar por VIDAS que vão do negro ao branco imaculado, e pode ser qualquer uma, desde que seja aquilo que eu faço porque sigo o coração, não porque sigo aquela bíblia social que foi escrita para todos nós...

A minha VIDA é minha, de mais ninguém. Terei de sacrificar partes dela eventualmente no futuro em detrimento de outras pessoas, mas esses são dos sacrifícios que quero fazer de coração aberto e de bom grado. Tirando isso, tenho de viver com a minha felicidade em cima da mesa. Não é só a minha felicidade que conta no mundo, isso é certo. Nesta mesa cabem sete biliões de pessoas, e eu nunca roubaria a alegria  de ninguém para que eu ficasse melhor. Mas se a alegria desse ninguém passa por eu fazer aquilo que ele quer, ou acha que devo fazer, então vai ficar sem ela, e eu nunca a roubei.
               
Esse alguém deixou a gaiola aberta, e ela fugiu.
               
Porque a minha VIDA é minha.

dezasseis e cinquenta, terça, vinte e nove de novembro de dois mil e onze
Portalegre, Vale de Cambra

1 comentário:

  1. Voltarás a partir, eu sei. Nem que seja Daqui Ali.

    Grande abraço.

    Tudo de bom.

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