domingo, 29 de maio de 2011

Varanasi


Estamos  no autocarro em direcção a... esqueci-me do nome. Começa com “s” e acho que é a última cidade antes do Nepal. Como sempre, os únicos estrangeiros neste autocarro sem ar condicionado. Mas não me faz grande diferença. A Sofia estava a sofrer um bocadito mas agora já está mais fresco, acho. Um gajo transpira bastante, a t-shirt até fica tesa quando seca (e a Sofia tem uma capacidade incrível de gerar sal, ficando umas marcas brancas redondas super bacanas nas t-shirts) mas ‘tá-se bem. Custa-me mais o calor em casa do que na rua. O que é curioso, porque é exactamente o mesmo em relação ao frio. Adoro o frio mas detesto sentir frio em casa.
               
Varanasi foi uma experiência brutal. Apanhámos o autocarro em Lucknow, que nos custou 190 rupios (2,85€) e chegámos a Varanasi já à noite. Recorri a um método que uso com alguma frequência. Temos o número do couchsurfer que nos aceitou, metemo-nos no autocarro e lá peço o telemóvel a alguém para telefonar ao futuro anfitrião. Já devo ter usado o telemóvel p’rai de  trinta pessoas nesta viagem. O Tarun, com quem íamos ficar, disse para nos metermos numa rickshaw para a morada que nos tinha dado. Contudo, tal como com os nossos anteriores anfitriões, era danado encontrar a morada do moço. Voltas e mais voltas lá fomos ter a uma estação de gasolina que era pertito. O condutor pediu outra vez o número do Tarun e ligou-lhe a pedir para nos vir buscar. Assim foi.
               
O Tarun é um advogado dos seus trinta e cinco anos, magérrimo com um bigode tipicamente indiano. Um gajo muito calmo para connosco, e igualmente reservado. Acho que era advogado de defesa, defendendo pessoas que eram acusadas injustamente de agressões e cenas afim. Disse-me que violação dá direito a pena de morte na Índia. Eu sou contra a pena de morte seja em que caso for, mas ao mesmo tempo, falando de violação, ou muito me engano ou em Portugal dá direito a uns anitos, seis a oito? É assim? Se alguém ler e tiver uma informação mais exacta que o partilhe, por favor, nos comentários. Depois há as sentenças b, claro, que são alguns anos a viver em casinha no bem bom enquanto a justiça portuguesa persegue o seu próprio rabo.

O quarto que tinha para nós não podia participar num daqueles anúncios televisivos da Ajax ou muito menos da Moviflor. A Sofia não estava muito impressionada com as condições, mas ‘tava-se bem. Ora veja-se, para mim basta ter tecto. Nem é preciso ter cama no verdadeiro sentido da palavra. E mesmo ter as quatro paredes não é fundamental. A nivel de condições, o mais importanta para mim quando em couchsurfing (numa viagem deste tipo) é ter wireless, depois ter tecto e finalmente ter cama. De resto que se lixe, um gajo arranja-se. E o gajo tinha internet, por isso bem bom!
               
Apareceu lá no quarto com um radiozinho que sintonizou numa estação de música indiana (não sei se daria para escapar, desde que entrei na Turquia que dificilmente consigo ouvir música ocidental) e três chás. Achei piada ao rádiozito. Achei enternecedor, mas creio estar a ser condescendente, porque dá-me vontade de dizer algo como “coitadinho” e não curto nada. Eu ia metendo as minhas pergntinhas aqui e ali, oleando a máquina da conversa, e estivemos um bocado no paleio, até que ele foi dormir. O rapaz, como os anfitriões anteriores (tirando o Gautam, que não acredito ser um terço do hindu que diz que é – lol que frase estranha), o Tarun era religioso. Já o disse, mas o hindiusmo é uma religião bué de marada! Incrível mesmo. Não sei quantos deuses, encarnações dos mesmos em vários animais resultando num mix de humano e animal; deuses que cortam as cabeças aos seus filhos e as substituem por cabeças de elefante, etc. Comentávamos que quem criou o hinduismo devia estar com uma moca de todo o tamanho. A sério. Mas pensando bem,é só porque estamos habituados à “nossa” religião aborrecida. Um deus, só? Isso é p’ra meninos! Falando mais a sério, tentei pôr-me na pele de um hindu e chegar assim meio de paraquedas ao Vaticano.
               
“Que cena estranha! Os gajos só têm um deus! Um deus para tudo? Para a criação, a destruição, a sustentabilidade, a morte, a VIDA... só um, como é que um deus é encarregue disso tudo? E tem um padre que é o chefe dos outros todos? Esse deus falará com ele? Que estranho... hei méne como ele se veste (diz o gajo a ver as fotos do papa), hei méne que riqueza (diz o gajo a entrar na Basílica de São Pedro, ou em tantas outras igrejas, basílicas, capelas)!!! Os gajos não vendem isto tudo e dão o dinheiro a quem precisa porquê? Tanta riqueza!... E o padre chefe anda em tourné aí pelo mundo num carro com vidro à volta para não o matarem?! Que estranho! E em alguns países o povo tem de pagar para ver o gajo a passar no seu carro de vidro! Que estranho... E as mulheres vestem-se de preto anos a fio quando o seu marido morre... que depressão, que estranho...”.
               
Perspectivas. Daí valer sempre a pena tentar-mos por-nos na pele dos outros antes de criticar os seus afazeres.
               
Na manhã seguinte acordei com uma granda tripe. Alguém na casa andava aos berros com uma mulher, que eu achava ser empregada mas que era a mãe do Tarun. Mas uma cena do caraças, berros e mais berros. Durante os próximos dias eu convenci-me que tinha sido o pai do Tarun, mas acho que só me convenci disso porque não queria ver o Tarun com essa luz, então menti-me. Mas acho que era ele. Estranho. E essa mulher, a mãe dele, não ganhava o prémio de Miss Simpatia no Miss Índia, nem quando era mais novita. Estou a queixar-me muito, se calhar, mas foi uma experiência porreira ter ficado em casa do Tarun, que se esforçou para que tivessemos tudo o que precisávamos. Acabada a tripe um gajo voltou a dormir e acordámos lá p’ras onze. O Tarun levou-nos na sua mota até à primeira ghat de quem sobe o Ganges. Bem, andar na sua mota, eu, ele e a Sofia (sim, três, mas isso é o pão nosso de cada hora por estes lados, e quatro pessoas em cada mota é o pão nosso de cada dia), foi uma experiência única. Que loucura! Dessa vez até foi levezinho, mas no dia seguinte, xauzinho, vi a morte a piscar-me o olho tantas vezes que pensavs que se estava a fazer a mim. Claro que, de certa forma, é tudo controlado, e estes indianos têm o seu instinto condutor ao máximo e nunca acontecesse nada. Ainda assim foi radical, bastante radical.
               
Ficámos na Asim Ghat. Ghat são os degraus à beira-rio onde o pessoal se banha. Há dezenas de ghats em Varanasi, sendo duas delas onde se cremam os corpos. O pessoal vem de toda a Índia para se banhar no Ganges em Varanasi, esperando assim livrar-se dos seus pecados. O pessoal de Varanasi e arredores tem o previlégio de ser cremado nesta cidade e ter as suas cinzas espalhadas na água. Seis tipos de pessoas não são cremados – crianças com menos de dez anos; pessoas religiosas, como gurus, por exemplo; grávidas; pessoas que morreram com lepra; pessoas que morreram com varíola (small pox, não sei se esta é a tradução correcta) e não me recordo do sexto grupo. Isto porque estas pessoas já estão puras quando morrem, não precisam de lavar os seus pecados.
               
Quem nos explicou isto foi o Sonu, que conhecemos na Ghat de cremação mais pequena. O Sonu, que não nos queria vender nada e não ia forçar nada, mas não desistiu até que nos viu na sua loja...
               
Caminhar pelas ghats, subindo o rio, é belo. Há uma calma no ar nada característica do resto da cidade, casas e templos coloridos, malta a nadar no rio, a rir-se, putos a brincar. Do outro lado do rio vê-se uma praia fluvial a perder de vista, com manadas de vacas de um lado e um ou outro puto a comandar o grupo.
               
Fomos indo com calma, e vimos o fim de uma cremação. Ao seu lado um corpo envolto em seda laranja. Foi aí que conehcemos o Sonu, que nos disse também que um corpo para arder precisa de 360kg de madeira, e que 1kg de madeira custa 250 rupios (3,75€). Acho difícil de crer, mas foi o que ele disse. Pois estivemos lá à conversa com o Sonu e até que fomos almoçar, num restaurante que o gajo recomendou. Desde o início que o gajo dizia que nãoi era vendedor e não sei quê e a perguntar se não queríamos ir ver a fábrica dele, para ver como as coisas são mesmo feitas. Eu ia dizendo que não e ele dizia que não nos queria forçar. Disse-o um sem número de vezes. Depois do jantar, como tinah dito que faria, veio ter connosco.  Bem o gajo tanto persistiu que acabámos por ir. Era já ali e não sei quê. A Sofia comprou dois lenços compridos muito fixes de seda, 2,5€ cada um. Até foi na boa. Foi interessante ver os gajos a fazerem a seda e depois conversar com o pai dele, que foi quem fez a venda.
               
Durante a tarde continuamos pelas ghats e às sete vimos a cerimónia na ghat principal, que dura ais ou menos uma hora e acontece todos os dias. Uma cena interessante, mas que acaba por ser um bocado extensa. O Tarun encontrou-se connosco no final, levou-nos a um restaurante, e depois fomos para casa.
               
No dia seguinte tínhamos planeado acordar às cinco da manhã, para apanhar um barco no Ganges com o sol a nascer. Assim o fizemos. Como tinha acontecido quando fomos ver o Taj Mahal, perdemos o nascer do sol propriamente dito, mas isso não fez com que não tivesse sido uma experiência excelente. Pagámos 100 rupios (1,5€) cada um para andarmos cerca de hora e meia. Havia aquela neblina matinal no ar, o sol não castigava a pele em demasia, por isso fluimos com calma e naturalidade pelo Ganges acima. A meio comprámos um pratinho de papel com quatro ou cinco flores de lotus, uma vela no meio e daquela tinta vermelha com que se faz uma pinta na testa, por 10 rupios. “Para bom carma”, dizia o gajo. Faz-me rir e acho ridículo que se pague para ter bom carma. Então porque comprei a cena, é justo perguntar... sei lá, pareceu-me giro ver as flores a desaparecer com o passar das águas supostamente sagradas.
               
Quando o barco nos deixou fomos tomar café e comer umas cenitas enquanto esperávamos o Tauran. O gajo foi impecável, sempre connosco p’ra trás e p’rá frente na sua mota. Apesar ter ficado com marcas indeléveis daquelas viagens terríveis que nem o tempo curará, apreciei bastante o seu esforço. ‘Tou no gozo – se calhar daqui a quinze anos já passou... já não penso naquela buzina a massacrar-me os ouvidos e richshaws a passar tão pertinho que quase dava para saber a marca de tabaco que o condutor fumava só de lhe cheirar o bafo.
               
O Tarun deixou-nos em Sarnat, onde íamos ver as ruínas de onde o Buda deu as suas primeiras palestras. Partimo-nos a rir p’rai por cinco minutos quando, a dada altura, achámos que “se calhar almoçávamos já”, apenas para perceber que ainda eram nove e pico. Acordar às cinco da manhã dá nisto.
               
As ruínas não foram nada de especial. Posto isto, almoçámos e demos umas voltas por lá. Fomos visitar um templo Jain, onde tive a oportunidade de entrevistar um bocadinho um practicante. Só um bocadinho porque o gajo não se safava muito com o inglês. A dada altura pensei que as religiões orientais tinham muito em comum, como o carma, o amor ao próximo, etc. Mas depois pensei que, na verdade, qualquer religião contempla o amor como pedra basilar. Mas depois entra o Homem e fode tudo. Às vezes até é o pessoal mais religioso que é pior pessoa, em Portugal, mas julgador, mais castigador, talvez, no fundo, por ser alguém mais castigado...
               
À tarde andámos pelas ghats. Íamos descansando aqui e ali. Fomos caminhando rio acima, até que chegámos à ghat principal de cremação. Foi uma cena do outro mundo. Surreal mesmo. Tinha umas quatro cremações a decorrer. Tem como que uma bancadazinha onde os familiares se podem sentar a observar, e os funerais decorrem mais abaixo, perto do rio. Assistir a um funeral, que conceito estranho. Íamo-nos sentar para lá quando alguém veio ter connosco e pôs-se a falar p’rai dez minutos sobre um hospital que precisava de doações e não sei quê, e quando dissemos que não íamos dar nada, disse que não podíamos ficar ali. Sentamo-nos então mais atrás, num sítio de onde dava para ver na mesma e mesmo ao pé de uma cena que achei incrível. Isto é, eu pensava que estava num filme. Tudo aquilo era tão estranho e diferente para mim, que senti-me como se nunca tivesse saído de Portugal e de repente tivesse aterrado noutro planeta. Mesmo ao nosso lado meteram um corpo embrulhado em seda laranja num barquinho, remaram até ao meio do Ganges, e largaram o corpo. E os familiares na costa, a ver. Uma cena mesmo incrível, digo outra vez.
               
O Sonu, o gajo a quem comprámos a seda, tinha dito que as mulheres não podiam ir aos funerais, porque choravam muito, e este choro podia fazer com que a pessoa tivesse pena e não quisesse partir, voltando a reencarnar. É que o verdadeiro objectivo não é reencarnar em alguém numa boa posição, mas deixar de reencarnar de todo, alcançando o nirvana, libertação total.
Agora pensem nisto... aqui a mulher não pode ir a um funeral porque chora muito. Em Portugal, dantes, pagava-se a mulheres para irem para os funerais chorar! Incríveis estas diferenças...

Depois disto, mais nada. Richskaw, casa, net, dormir.

Estamos agora no autocarro. Devemos chegar a Sunali à meia-noite. Vamos lá passar a noite e amanhã vamos para Pokhara, no Nepal.

19h36-s-28-5-11
Algures entre Varanasi e Sulani, Índia

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