sexta-feira, 13 de maio de 2011

Agra

- Posso fazer-te uma pergunta? – perguntou o rapaz de bigode, enquanto por si passávamos, à procura de um restaurante, em Jaipur. 
- Sim, diz – respondi, parando e olhando-o de frente, curioso. A Graciete e a Sofia vinham um pouco atrás. 
- Porque é que as pessoas generalizam? 
- Como assim? – perguntei. 
- As pessoas pensam sempre que os indianos lhes querem vender alguma coisa sempre que falamos com eles. Porquê? 
- Não sei. Bem, a verdade é que tu estás com uns bonecos na mã para vender... e o teu amigo está a tentar vender as marionetas à minha amiga. 
- Sim, mas eu não te quero vender nada agora. E as pessoas pensam sempre que quando queremos falar com elas é porque andámos atrás do dinheiro delas. 
- Iá, eu entendo, é chunga, lamento. 
- Pois... – disse o Dinesh, de dezanove anos, com aquel olhar vivo e inteligente. Falou de seguida em como estava a estudar história, e convidou-nos para um chá. Um par de horas antes o nosso anfitrião, Sunny, tinha-nos dito que às vezes o pessoal faz-se amigo e tal, convida a malta para uma bebida e droga-os, roubando depois o que pode. Ainda assim, disse que sim. Tinha um bom feeling com o rapaz. Caminhámos, eu, as miudas (a Graciete e a Sofia), o Dinesh e os seus amigos, virámos à esquerda numa ruela e sentamo-nos lá num banquito. Um senhor, imagino, amigo deles tinha um tascozito sem paredes onde fazia o chá. Era uma mesa com um fogãozito, basicamente. 
- Sabes... as pessoas vêm visitar a Índia, mas vêm em viagens artificiais. Autocarro com ar condicionado, depois para o hotel de ar condicionado, não falam com ninguém, seguem para ver as coisas, de volta para o hotel... é triste. Não conhecem as pessoas, não falam com os locais, não aprendem nem ensinam – dizia, enquanto saboreava o seu chá. Não me dizia nada que eu não já pensasse, mas ainda assim senti-me previlegiado em conhecer aquele rapaz que me dava a ideia de ser alguém inteligente e com um bom futuro à sua frente. Tinha um receio latente que a qualquer momento o rapaz me perguntasse se eu não queria comprar isto ou aquilo – toda aquela conversa das pessoas pensarem sempre que eles querem vender algo ia por água abaixo se, efectivamente, ele só tivesse falado connosco porque queria vender algo. Falámos um bocado sobre viagens, e ele, vendo os olhos dos amigos nas miudas, disse que os indianos gostavam de flirts, e que ele às vezes tinha vergonha disso. 
- Namoras? – perguntei. 
- Não... já namorei, agora não. Eu com estranhos e tal falo na boa, mas com raparigas tenho vergonha – respondeu. – Que é que achas do dinheiro? – perguntou, assim meio do nada. 
- Acho que não é importante, mas necessário para algumas situações... 
- Sim, sabes... as pessoas pensam em dinheiro e pensam que dá tudo, mas... não se pode comprar sono, não se pode comprar paz, não se pode comprar amor – foi dizendo, enumerando com os dedos. Antes de irmos embora convidou-nos para irmos com eles a uma escola no dia seguinte, onde ele ensinava música aos putos, de graça. 
- E eles ficam sempre contentes de ver pessoas brancas – disse, finalizando. Não por isto exactamente, claro, ficámos com vontade de ir com eles. Amanhã de manhã vamos ver o forte, e depois se der tento contactar o puto. 
Não caminhei mais do que um minuto e apareceu outro senhor, que me veio apertar a mão e perguntar se me podia fazer uma pergunta. “Engraçado”, pensei. 
- Eu ontem ‘tava a ver um programa na BBC... é uma televisão inglesa... e eles estavam lá a dizer que na Europa há problemas com skinheads... eu se fosse para lá tinha alguns problemas? – perguntou. 
- Acho que não. Eu vivi dois anos em Birmingham, uma cidade com muitos indianos e paquistaneses, e que eu saiba era sempre tudo tranquilo. E o meu país, Portugal, é o segundo da União Europeia que melhor acolhe imigrantes, por isso pelo menos aí também é tranquilo... 
- Pois, pois... eu sei que há boa gente e má gente em todo o lado, como na Índia também. Olha posso-vos convidar para um chá para falarmos um bocadinho? 
- Olhe desculpe mas nós íamos agora jantar... 
- Ah... – disse, com pena – E amanhã? 
- Ok, se eu passar aqui e o vir, eu chamo-o, a sério – respondi, sem mentir. Desde este senhor até ao McDonald’s, onde as miudas jantaram, ainda apareceu outro senhor a pedir para lhes tirar umas fotos com a sua joalheria, a troco de uma pequena recompensa. Lá jantaram e mandamo-nos para o autocarro. Como a Graciete me relembrou, eu sou “contra” comer no McDonald’s quando em viagem. Se podemos experimentar as cenas locais, para quê comer algo nada saudável e que podemos comer em qualquer cidade portuguesa? Mas por ser contra, não como. Mas não posso proibir os outros de o fazer, claro. E para ser sincero, mesmo comer em Portugal me faz um bocado de confusão, ainda que o faça pelo simples facto de curtir bastante. Eu e o capitalismo não somos muito amigos, e cada vez gosto menos de franchisings, e de ricos a ficarem mais ricos e os pobres na mesma. Um mundo ideal, para mim, seria um mundo onde o pessoal tivesse os seus produtos locais como primeira opção, fazendo a riqueza circular de uma forma muito mais justa e livre. O problema é que o pessoal prefere sempre poupar dois ou três euros e ir ao Modelo comprar frango em vez de ir à Adega Soares, ou ir ao Ikea em vez de ir à XXX (nome qualquer de empresa de móveis local – não sei). Contra mim falo, porque já fui ao Ikea, e confesso que prefiro os seus móveis simplistas às cenas velhas e demasiado elaboradas que vejo em muito lado. Bem daqui a um bocado estou a falar das tendências mobiliárias da época 2011/2012... 
Apanhámos o autocarro que, apesar de estar à pinha, tinha uma única mulher, que eu tenha visto. Quando nos apeámos andámos um bocado às voltas à procura da casa do nosso anfitrião. A dada altura vimos umas luzes num canto, muita gente sentada a comer, no que me parecia ser um casamento. “Vamos ficar aqui um bocadinho até nos convidarem”, eu disse. Não precisámos de esperar mais que dois minutos até aparecer um senhor de turbante laranja a fazer o gesto de comer, com um tom interrogativo. Sim, siga, claro. Sentámo-nos com o pessoal, apressaram-se a dar-nos comida, a noiva veio-nos conhecer, tirámos fotos, fomos filmados, foi uma alegria. Lá apareceu um rapaz que falava inglês e disse que o verdadeiro casamento era amanhã, e para nós aparecermos às nove. “Ok méne, siga!”. Foi fixe! Andava à espera de ir a um casamento desde que tinha saído de Portugal, e finalmente aconteceu – ainda que o verdadeiro casamento seja amanhã. 
Agora estou na cama. A Grace ao meu lado e a Sofia no outro quartito a cortar as unhas. 
As miudas chegaram no sábado. A Graciete chegava ao aeroporto às cinco da manhã e a Sofia às onze e tal. era para dormir um bocadito, mas estive à conversa com o Manu e a fazer outras cenas na net, e quando reparei já era a hora que tinha combinado com o Harry. Nessa mesma noite, depois de jantar consigo e o seu pai, fomos dar uma caminhada, comer um gelado, e ele ficou de me acordar às quatro e um quarto. Não foi preciso. Tomei banheco, disse um “até daqui a quinze dias”, e segui. Curti ver a cidade a acordar. Primeiro passava alguém a cada dez minutos, depois a cada cinco, a cada um,... paralelamente ao sol, ia crescendo o número de pessoas que acordavam para mais um dia na capital indiana. 
O meu autocarro chegou um bocado tarde, e isso fez que quando chegasse ao aeroporto a Graciete já lá estivesse. Paciência. Foi interessante vê-la chegar, correndo toda esta distância, que me levou três meses (ainda que, claro, sem pressa), em seis horas e meia, da Finlândia. Beijinhos e abraços, e fomos procurar um sítio para dormir umas horitas. Eis que a Sofia chegou às onze e tal, sabendo nós isto através de uma mensagem da mesma. Tinhamos posto o despertador para ir receber a miuda mas ela chegou mais cedo! Nada feito, não recebi nem uma nem outra! 
Apanhámos o metro para a cidade e uma riksha para o comboio. Estávamos todos partidos. Esperámos umas horitas e pusemo-nos a caminho. As meninas cheias de frescuras não se quiserem deitar naquela partezita acima e não dormiram nada. Já eu, quando chegámos, eu pensava que ainda faltamam p’rai três horas – dormi bem.
O Maverick, rapaz que tinha contactado no couchsurfing, tinha-me respondido com um entusiasmo fora do normal. Dizia que tinha adorado ler a minha mensagem, e que estávamos mesmo em sincornia e não sei quê. Achei engraçado, mas um bocado naquela. Porém, confesso que adorei aquele gajo. Mesmo fixe. Nos meus pensamentos embriegados (já não bebia nada há mais de um mês) cheguei a dizer à Grace e à Sofia que este gajo era tipo minha alma gémea. Gayzices aparte, claro, mas às vezes ouvo-lo a falar era como ouvir-me a mim. E curtia bué o que ele tinha para dizer. Quer dizer que gosto de me ouvir, ahaha! Escusado seria dizer que elas gozaram com esta minha observação de almas-gémeas... 
O méne foi-nos buscar à estação e levou-nos para o hotel. Não nos podia albergar mas queria pagar o hotel. Sentia-se mal e dizia ser a sua responsabilidade e tal. Eu agradeci mas, claro, disse que era na boa. Tinha-o contactado também a Camille, uma couchsurfer francesa, com pequenas dificuldades no inglês, mas muito fofinha e simpático. Comentei agora com a Graciete uma verdade que me ocorreu. Nesta viagem já tive aquele sentimento de micro-família várias vezes. E é demais, muito fixe. Tipo em Agra, a cidade para onde fomos quando as miuas chegaram, estávamos os três tugas, o Maverick e a Camille, e ao segundo dia já parecíamos uma pequena família. Fixe. 

Jantámos e bebemos nove cervejas de 600cl. Foi porreiro. Num terraço com vista para o Taj Mahal falámos um pouco de cada um, partilhámos as nossas visões sobre o mundo e sonhos. O Maverick tem 28 anos e é comando. Está numa posição que lhe permite auferir um salário porreiro e dá ordens. Juntou-se ao exército porque queria um mundo mais pacífico, mas apercebeu-se que a paz não é algo que se possa impor, pelo que planeia despedir-se muito brevemente, e mandar-se em viagem. É um gajo com a sua pinta, magro, afável e muito dado. 
No dia seguinte dormimos o que tínhamos a dormir, e à tarde fomos dar uma volta, eu as miudas tugas e a Camille. Fomos ver o Baby Taj e as traseiras do Taj Mahal, onde não se pagam os fatídicos 12 euros. O Taj Mahal, na verdade, não tem traseiras, pois a sua simetria faz com que os seus quatro lados sejam iguais. Ficámos lá um par de horas, com uma vista porreira. À nossa frente um riozito, e o Taj, imponente, do outro lado. Acabámos por ver o Taj verdadeiramente no dia seguinte. Eu tinha hesitado com o preço, sendo que ver ver já o tinha visto de graça, mas ok, vale a pena. Numa viagem com um orçamento baixo como o meu, vale a pena ver o Taj uma vez, mas só uma vez. 
Nessa noite jantámos com o Maverick novamente. 
Na segunda acordámos às cinco da manhã! Sim! A ideia era ir ver o nascer do sol no Taj, mas acabámos por chegar um bocado tarde. Paciência. Ainda arranjámos um guiazito, que não nos disse grande coisa mas que sabia de onde tirar fotos fixes. Assim, aqueles 0,80€ que cada um de nós deu foi, para mim, como pagar a um conselheiro fotográfico, e não a um guia. 
Voltámos ao hotel, dormimos uma sesta e mandámo-nos para Fatepur Sikri. Aprendemos que não se pode confiar muito nos autocarros indianos. Chegámos lá, perguntei a que horas era o autocarro, e o gajo disse que daí a meia hora. Perguntei passados vinte minutos, e ele disse daí a meia hora. Perguntei passados vinte minutos e ele disse daí a vinte minutos. Eventualmente começou a ficar tarde para ir e depois voltar (era a 45km de distância) e como estavam p’rai quarenta graus, decidimos voltar, nas calmas. 
Quando voltámos estive na net um pedaço e a Grace foi ao quarto. Estava com febre, descobri ao voltar. Estava benzito, mas com algum frio, 39 graus e o estômago às voltas de vez em quando. Se algum familar seu estiver a ler isto, que não se preocupe, ela agora está porreira. 
Fomos jantar de novo com o Maverick, que estavas todo rebentado. Foi pena porque estávamos todos partidos quase em cada dia, por isso não pudemos beneficiar dos nossos máximos potenciais, digamos, em dia nenhum. Curtia vê-lo outra vez, e pode ser que ele venha ter connosco às montanhas que o próprio nos aconselhou. Antes de nos despedirmos deu-nos uma prenda a cada um, que só podíamos abrir no comboio. Eram trinta rupees com um texto a falar nas formas como podíamos usar aquele dinheiro. Era só dinheiro, mas a mensagem latente era uma de dar, simplesmente. Gostei do gesto. 
Esta manhã, que parece que já foi há uma semana, acordámos às quatro, para apanhar o comboio. Ah pois é, bebé! Tem sido um baptismo de fogo para a Graciete e a Sofia. Estão a gostar, claro, mas custa-lhes o calor.
Não me apetece escrever muito mais!
0h27-3ª-10-5-11
Jaipur, Índia

1 comentário:

  1. Gostei (GOSTO!) de tudo. Até do...."zito" :)))))))))

    Grande abraço!

    Continuação de boa viagem.

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