Cheguei
a Lomé às cinco da manhã de Sexta para Sábado, depois de ter
esperado umas horas em Casablanca. Conheci um Francês no autocarro
que vai da gare para o avião que disse que talvez pudesse ir no táxi
dele. Não iria. Provavelmente ele já tinha visto por isso não teve
de esperar, como eu. Depois, quando pedi o visto, e enquanto
aguardava, conheci um Português que trabalhava com o Ventura, que já
tinha conhecido por estas terras. Um homem de aspecto vivido, bigode
farto, tatuagens cansadas e rugas fortes na cara. Quando passei para
o lado de lá e tentava negociar os sete mil francos que me pediam
vi-o e perguntei se não se importava que eu fosse no táxi que a
empresa dele tinha mandado, caso ele passasse pela minha zona. Ele
disse que sim, mas não devia estar com grande vontade pois quando
perguntei ao taxista se passava em Avenou o tuga disse um “Não”,
tipo “Não, pois não?”, apesar de me ter dito anteriormente que
não sabia onde era. Estava com sono, certamente, mas vá, podia ser
mesmo a caminho.
O
Remy veio para o Togo, tal como outros franceses para outros países,
numa espécie de voluntariado pago, ensinando a juventude local a
trabalhar com computadores e a programar. Devia ter bazado já há um
ou dois meses mas este rapaz queria deixar um legado, pelo que vai
ficar até Julho. Através de entrevistas aos seus estudantes
seleccionou cinco ou seis e dá-lhes aulas todos os dias da semana,
aos Sábados e alguns Domingos, sem já ganhar nada. Quando lhe
sugeri regressar a França sem voar quando isto acabasse e me disse
que não ia ter dinheiro, e lhe perguntei se não podia usar o
dinheiro que tinha ganho aqui, disse que não ia ter muito porque ia
comprar-lhes computadores e cenas. Para que esse seu legado seja uma
empresa registada em actividade que os seus estudantes possam levar
em bom rumo.
-
Ela diz que eu não devia fazer isso, que é muito complicado –
dizia-me, há meses, falando de uma francesa que andava por África a
inspeccionar o trabalho dos voluntários – e que não vai resultar.
É aquela mentalidade... tipo vem-se para aqui, ajuda-se um bocadito
para se sentir melhor, mas mais não, mais eles não conseguem...
Passei
o meu primeiro Sábado em casa de volta dumas cenitas enquanto o Remy
estava com os seus alunos e depois fomos córtiré. Partiu tudo. Não
sei muito bem como deu a volta que deu, mas o que é certo é que,
num momento estava num bar a beber cerveja e a ver um rapaz sem perna
a dançar espetacularmente num palco com uma música que quase
impossibilitava o discurso e no outro estava dentro uma loja de
madeira com telhado de zinco com o Remy e mais seis ou sete togoleses
a cantar, um méne a fazer de um bidão amarelo ao contrário um
djambé, outro com uma faca e uma garrafa vazia a marcar ritmo.
No
Winners Bar, esse primeiro do rapaz sem perna, não estava a curtir
tanto. Estava com o Remy sentado numa mesa de plástico, íamos vendo
o pessoal a dançar no palco, ouvindo música, mas não dava para
conversar muito. Entretanto apareceu o Achille e o Coco, amigos do
Remy que já conhecia. Bebemos mais umas e quando aquilo começou a
dar ares de fechar mudámos de sítio. Daí fomos a pé para um bar
onde, não sei bem porquê, nos meteram uma mesa nas traseiras.
Ficámos lá umas horas a beber rodeados de vasilhame. Quando bazámos
foi quando apareceu a música. Eu já estava bem lançado, e às
vezes quando estou assim começo a cantar. Se alguém se junta é o
diabo daltónico. Já não sei bem como foi, mas primeiro juntou-se
um, depois outro, depois outro, e depois estávamos naquela lojita a
dar show.
Agora que penso nisso acho que foi um bocado má onda para a senhora
que lá estava a dormir, mas paciência, foi o que foi. Daí
enfiamo-nos por umas ruas de terra, sempre de terra, como qualquer
rua que não seja principal em Lomé, e fomos ver uma malta que
estava a acordar para a VIDA. Serviram-nos fufu
e shots
de uma cena qualquer com gengibre. Eu bebi meio e deixei ficar. Já
tinha mandado o greg, discretamente no bar das traseiras, não queria
fazê-lo outra vez. O Achille e o Coco, por outro lado, por eles
ainda lá estava a mandar shots
daquela cena. Já o sol raiava quando bazámos. O Remy mandou também
o seu greguezito e apanhámos uma mota. Só tínhamos trezentos
francos para os dois mas o senhor foi porreiro e levou-nos.
Na
Segunda-Feira fui prolongar o meu visto. Tinha pago dez mil francos
pelo visto de uma semana no aeroporto e podia prolongá-lo para um
mês gratuitamente. Habituado a surpresas nem sempre agradáveis,
decidi jogar pelo seguro e fui fazê-lo. Fui buscá-lo na Terça e na
Quarta fui fazer o visto do Benim. Ou ia, sendo que, como é costume,
as regras estão sempre a mudar. Quando cheguei lá a secretária
perguntou-me se eu tinha carta de convite. Surpreso, disse que não,
e ela mandou-me falar com a cônsul. Esta cônsul, tal como muito
pessoal das embaixadas, era a simpatia em pessoa. A mesma pessoa que
me tinha dito, anteriormente, com cara de quem lhe tinha cuspido, que
eu devia ter escrito “Portugaise” em vez de “Portugais” para
a minha nacionalidade, mal olhava para mim ao falar comigo,
preferindo olhar para o ecrã do computador, falava de uma forma que
me fazia querer dar-lhe um microfone e colunas pelo Natal... e
dizia-me que agora precisava de uma carta de convite autenticada pelo
notário ou de uma reserva de hotel com o carimbo do mesmo. Saí de
lá meio agastado. África a dar-me na cabeça outra vez. E decidi aí
que desta vez vai ser mesmo. Se eu não conseguir ir a pedalar sempre
até à África do Sul, não pedalo, paciência. Se tiver de apanhar
alguns autocarros, apanho. E estou em paz com isso. Porque quero,
quero mesmo, estar na Cidade do Cabo dia 7 de Agosto. Não é
daquelas cenas que se pode adiar. No dia sete ou oito quero apanhar
um avião para o Camboja para encontrar o meu Kidus. Não vou pedalar
até à Namíbia, voar para o Camboja e depois voltar outra vez para
a Namíbia para acabar. Vai ser assim.
Não
queria pedir ao Arthur que perdesse horas de trabalho para ir ao
notário por isso tinha de fazer uma reserva de hotel. A minha ideia
era partir Sexta, quando eles entregavam os vistos, mas se fizesse a
reserva para Sexta e eles não enviassem o carimbo, impossibilitando
assim a obtenção do visto, já não dava para cancelar. Assim,
jogando pelo seguro, reservei para Domingo. Fiz a reserva e vim para
casa, preocupado com o facto de um hotel tão barato provavelmente
não ter carimbos e essas cenas. O Remy e a Maryse aconselharam-me a
fazer reserva num hotel melhor, ter o carimbo e depois cancelar, mas
não me apetecia. Uma coisa era fazer a reserva e cancelar, como fiz
para o visto do Gabão, outra coisa era pedir a alguém que se desse
ao trabalho de carimbar, digitalizar e enviar e depois cancelar. Não
me sentia bem com a cena. Na Quinta fui à net
e
tinha um e-mail deles a confirmar a reserva. Mas era só um e-mail,
sem carimbo nem assinatura como lhes tinha pedido. Ia ter de dar. Fui
pedir o visto e deu mesmo! Tinha entrada no Benim para esse Domingo.
Não sabia era o que aconteceria aqui com os meus interiores.
Sexta-Feira
fui jantar com o Remy ali um tascozito de beira de estrada. Salada
com massa, maionese, tudo altamente. Até trouxe um extra para comer
em casa. Quando acordei no Sábado um pouquito abananado. O Remy
queria ir ver uma palestra sobre o sistema educativo no Togo, mas
comemos uma sanduíche, vimos um episódio de Spartacus, depois
outro, e depois já era tarde. Ainda assim fomos mais tarde, ia haver
rap.
Sentia-me estranho. Chegámos, pedimos duas cervejas e sentámo-nos a
ver o pessoal com músicas de crítica ao governos e cenas do género.
Convenci-me que estava tudo bem e pedi outra cerveja. Sentia-me
ourado, ou como se tivesse acabado de acordar depois de quatro horas
de sono quando precisava de doze. Estávamos prontos para bazar
quando alguém meteu conversa connosco. Durante aqueles dez minutos
só me apetecia gritar “Por favor, caralho, vamos embora!!!”, mas
a maneira como nos sentimos, seja emocionalmente ou fisicamente,
nunca pode ser desculpa para sermos uns trouxas. Mas foi difícil
para caramba. Queria bazar. Havia uma portuguesa que tinha contactado
o Remy e a ideia era irmos beber um copo com ela. Eu curtia mas
começava a perceber que talvez não desse. Quando bazámos e fomos
jantar e eu só conseguir menos de metade do meu prato de massa
percebi que, definitivamente, algo não ia bem.
Estávamos
também com uma amiga do Remy que tinha de ir a casa dele deixar a
mala. Fomos na mesma mota e mal entrei, por volta das dez, fui
directo à cama. Acordei três ou quatro vezes em duas horas para
mandar esguicho pelo rabo e quando cheguei à cama depois da última
e comecei a sentir tudo quente percebi que ia acontecer, pela
primeira vez, algo que eu pensava que já teria acontecido várias
depois de tanto tempo em África. Nunca tinha vomitado! Certo, tinha
vomitado no Sábado anterior, mas isso foi por ter bebido um pouco
demais. Mesmo assim tinha sido a primeira vez. Esta seria a primeira
vez que vomitaria por ter comido algo que me fizeram mal.
Provavelmente por ter passado três meses e ter ido logo directo para
o Togo, em vez daquela suave transição que tinha feito
anteriormente.
Custou
como se me pegassem no esófago e o enrolassem à volta da traqueia,
mas lá vi a salada do dia anterior a sair. “'Tou fodido”,
pensei. “Era por isto que me sentia inchado”. Essa noite foi uma
sucessão de viagens ao quarto-de-banho. Talvez vinte vezes. Acordei
Domingo e sabia que não ia dar para chegar a Cotonou no mesmo dia.
Eram só quatro ou cinco horas, é certo.
Em
2009 fui à Índia duas semanas. A viagem que mudou a minha VIDA.
Numa das minhas últimas noites estava em Hampi, na boa, a curtir com
os meus recém amigos. Comi dois pratos de carbonara e uma panqueca
no fim. Ovos, leite, natas. Acordei a meio da noite a pensar que ia
morrer. A minha cabeça pesava vinte quilos e durante essa mesma
noite devo ter cagado umas vinte vezes e vomitado umas dez. Não
seria tão mau senão tivesse uma viagem de catorze horas num
autocarro indiano em estradas indianas. E tinha mesmo de ir. Como
tudo o que entrava saía, estive umas 36 horas sem comer e umas 24
sem beber. O autocarro tinha daqueles bancos que vão para trás
completamente até ficarem horizontais. Deitei-me e tentava
permanecer hirto, como se tivesse em penitência. Se mexia uma perna
um bocadito vinha uma cólica que só meu deixava a ver-me a cagar-me
no autocarro. Tinha de aguentar. O autocarro sempre aos saltos. Suava
da testa, respirava fundo, contraía o esfíncter, não podia
cagar-me no autocarro! A meio parámos para o pessoal ir ao
quarto-de-banho. Eu estava tão mal que, após ter esperado que as
sete pessoas à minha frente se aliviassem e chegasse a minha vez,
caguei a um metro da sanita. Não aguentei até à sanita! Verti água
para limpar, limpei-me, sequei-me com os boxers e deixei-os lá. De
volta ao autocarro, mais sete horas de tormento. Até que cheguei a
Panjim! Tinha conseguido! Achava eu.
Entrei
numa riquexó, pedi para me levarem a um hotel barato qualquer.
Quando chegámos o méne veio comigo ao balcão. A cena da minha
estupidez é que em viagem sou tão baixo-orçamento às vezes que
até o sou quando estou prestes a cagar-me! Não aceitei o preço que
me fizeram e caminhei estrada fora, devagarinho, com as pernas
esticadas. “Pode voltar, eu convenci-os a fazerem-lhe um preço
melhor!”, dizia o condutor da riquexó, confuso por ver-me parado
no meio da estrada com cara de galinha com ovos de avestruz. “Não,
vá-se embora, por favor”, supliquei. Não sei se ele chegou a ver,
mas o que é certo é que me caguei em pé, no meio da estrada. Uma
triste conclusão para todo aquele heroísmo de me ter aguentado no
autocarro. Ninguém se caga em pé a menos que não tenha chance, mas
talvez eu me tenha aguentado mais no autocarro em respeito aos meus
colegas viajantes.
Até
ter sido preso no Laos, essa tinha sido a pior experiência da minha
VIDA.
O
que legitimava a minha renitência em não me querer enfiar num táxi
de quatro ou cinco horas até Cotonou estando assim. Passei então
Domingo entre viagens ao quarto-de-banho, séries, água, bananas, e
um bocado de arroz ao fim do dia. Falei com a Graciete e quando lhe
disse que tinha febre desaconselhou-me a tomar imodium o mesmo
medicamento que tomei nessa aventura na Índia e que me tapou durante
três dias. Porque se tenho febre é porque há uma bactéria, e não
se deve interromper a tempestade, parece...
A
minha ideia era ir hoje, Segunda. Estou melhor, é verdade, mas ainda
não consigo estar três horas sem ir ao quarto-de-banho. E se amanhã
for cedíssimo pode ser que ainda consiga chegar a tempo de fazer o
visto da RDC, não perdendo assim nenhum dia...