Véspera
de Natal.
Sentado numa cadeira de vime à porta do
meu quarto cor-de-rosa em Brazzaville a ouvir Stranger Things Have
Happened dos Foo Fighters vezes sem conta, escrevo o meu último
texto desta viagem para os próximos tempos.
Vou a casa. Vou ter de ir a casa.
Ontem tive talvez o dia mais stressante
desta jornada. Do início ao fim, sempre aos tropeções em problemas
e complicações. Acordei às seis e tal da manhã, Kinshasa
avizinhava-se. Tomei banho, meti as coisas nas bicicleta, despedi-me
da família do Gauthier e saímos. Sentámo-nos lá fora, na beira da
estrada de terra, a comer um iogurte e um pão com chocolate enquanto
esperávamos o táxi que nos levaria ao cais. Quando chegou tirei o
pneu da frente da Mónica, metemo-la na mala e seguimos. Atravessámos
a cidade, parámos na garagem onde o meu amigo trabalhava e
atravessámos os campos à beira-rio que o pessoal cultivava, saíndo
do outro lado no cais. Kinshasa sorria do outro lado do Rio Congo.
O Clovis, um homem magrito de t-shirt
vermelha que falava inglês,
abordou-me, eu disse que queria levar a bicicleta, ele disse que o
barco maior que a podia levar viria daí a uma hora. Geralmente trato
eu das cenas, não costumo ir com a malta, muitos deles estilo-abutre
que nos vem vender bilhetes inflacionados ou permissões das quais
não precisamos, mas decidi ir na onda do homem. Esperámos uma hora,
duas.
- Onde tiraste o teu visto para Kinshasa?
- perguntou-me, estávamos encostados ao muro. Choviscava e ele
fumava um cigarro.
- No Benim.
- Ui... isso vai dar complicações... -
respondeu, com má cara.
- Porquê?
- Porque eles exigem que o visto tenha
sido tirado no país de residência.
- Mas... o meu visto é válido.
- Pois, mas eles lá do outro lado são
duros... espera, eu ligo a um conhecido meu do outro lado. Posso
ligar do teu telemóvel? - passei-lhe o meu Samsung branco e ele
disse que o conhecido pedia duzentos dólares para me deixar entrar.
- Nem pensar! O meu visto é válido! -
atirei, sem pensar duas vezes.
- Pois, mas eles do outro lado são
assim... - ia dizendo. O homem em Kinshasa, um tal de Henry, deu um
toque, ligámos, e ele pediu cento e cinquenta dólares. Eu sabia que
este tipo de coisas acontecia. Muita da polícia e outras autoridades
em África aproveitam-se para fazer dólares extra em qualquer
situação. E como eu tinha um visto perfeitamente válido, não quis
ceder e fazer parte desse sistema sujo. Teria de resultar, desse por
onde desse. Mas tinha ficado em mim um nervoso miudinho. E se não
desse? Que faria? Enviei mensagem aos meus pais, pedi-lhes para me
enviarem o número da Embaixada de Portugal, talvez eles me pudessem
ajudar. Entretanto o Clovis ia sempre falando acerca do quão maus
eles eram do outro lado e que, quando eu chegasse, tinha de ser
forte, firme, e corajoso. Ele queria ajudar, mas estar sempre a bater
na mesma tecla não me estava a ajudar muito... só meu deixava mais
apreensivo.
O tempo continuava a passar e eu não
percebia exactamente do que estava à espera. Entrei pelo portão que
dava acesso ao cais e fui dar os meus dados e levar o carimbo de
saída do país. Voltei e o Clovis disse que eles estavam a pedir
cinquenta euros para levar a Bicicleta. Nem pensar. “Eles estão a
dizer que a bicicleta não pode ir, que precisa de autorização”,
disse. A situação ia mudando, como se tivesse VIDA própria. Havia
donos de barcos a mandar preços para o ar, trabalhadores do cais e
pessoal que trocava dinheiro, todos tinham algo a dizer. Para tentar
resolver pelo menos o problema da autorização levámos a bicicleta
aos escritórios da alfândega e eles disseram que não era preciso
nada. Voltámos ao cais mas ninguém a queria levar. A menos que
pagasse cinco bilhetes. Ou seja... a cena da autorização só era um
problema caso eu não quisesse pagar um preço estúpido, como não
queria. Andámos para trás e para a frente, falámos com doze ou
treze pessoas. Foi de cinco para três bilhetes. “Mas a bicicleta é
bagagem!”, tentava dizer, “As pessoas podem levar bagagem sem
pagar! Se eu comprar dois bilhetes há espaço de sobra! Para mim,
para a minha bagagem, para outra pessoa que não vai e para a bagagem
dessa pessoa!” Mas as palavras caíam no vazio de quem queria fazer
mais uns francos. O sol apertava, as horas iam passando e não
encontrávamos uma solução. “Vamos à alfândega outra vez”,
disse o Clovis. “Trazemos um papel qualquer”. Mas, quando lá
chegámos, eles disseram que uma autorização custava cento e
cinquenta euros, e não era preciso para a Bicicleta. “Mas não
podem só escrever num papel à mão a dizer que estivemos aqui e que
vocês disseram que a Bicicleta não precisa de autorização?”.
Não. “Então podemos dizer para eles telefonarem para confirmar?”
Podem.
Voltámos e o Clovis disse para irmos
esperar o chefe a um restaurante improvisado encostado a uma rede de
arame. Estivemos lá uma hora, ele bebeu uma cerveja, não apareceu
chefe nenhum e voltámos para a beira do Gauthier, que pacientemente
guardava a Bicicleta. Entrámos pelo portão para quem vai embarcar,
o Clovis falou com alguém que lhe deve ter oferecido uma opção que
parecia mais viável. “Pagas um bilhete pela Bicicleta, ela vai num
barco de carga e espera-te do outro lado!”, disse. Okay, tudo bem.
Não adorava a ideia de me separar assim da Bicicleta, indo ela com
alguém que eu nem conhecia mas, apesar de toda a corrupção
africana e de muitas vezes o pessoal querer o dólar extra, ainda não
tinha sido roubado nenhuma vez, por isso alinhei. Iá, e estava farto
daquilo. Comprei o meu bilhete, despedi-me do Gauthier e passámos
para o outro lado do portão. Tinham passado mais de três horas
desde que tínhamos chegado. “Dá-me então onze mil francos para
eu levar a Bicicleta ao barco”, disse o Clovis. Não tinha trocado,
dei-lhe quinze mil. “Tive de pagar quatro mil ao guarda do porto”,
disse, quando voltou. Fiquei com bastantes dúvidas e, mais tarde,
quando falei com o Gauthier, ele assegurou-me que ele não tinha pago
nada quatro mil. O que era irónico, sendo que o Clovis estava sempre
a criticar o pessoal que só queria dinheiro, só queria dinheiro.
“Porque lá do outro lado em Kinshasa eles só querem dinheiro!”
- Estou sim?
- Sim, fala da Embaixada de Portugal?
- Sim!
- Viva. Eu sou um português que está em
Brazzaville prestes a embarcar para Kinshasa. Eu tenho um visto
válido mas estão aqui a dizer-me que se o visto não tiver sido
tirado no meu país de origem não posso entrar. Isso é verdade?
- Ah, pois é.... então porque é que
você não o tirou em Almada? Tem lá um consulado... e eles nem são
muito chatos.
- Pois... o problema é que eu saí de
Portugal em Fevereiro... e se o tivesse tirado lá já tinha expirado
– respondi. A senhora passou-me o cônsul. Perguntei-lhe o mesmo.
- O seu visto foi tirado num consulado
oficial ou num consulado honorário? É que há consulados honorários
em África que passam vistos e não podem... e se for esse o caso não
posso fazer nada por si.
- Não, foi numa embaixada mesmo!
- Então pode entrar, pode!
- Não preciso de pagar nada?
- Não, seja firme! Diga que já falou
com o cônsul e diga que ele falou com o Joe Cottongolo e que não há
problema. Diga esse nome! E se for preciso ou vou lá buscá-lo! -
respondeu. Sentado na minha mala olhei para Kinshasa, lá ao longe, e
senti-me mais aliviado. Esperei mais uma hora e tal. Levantava-me, ia
dar o passaporte para o manifesto do barco, voltava a sentar-me.
Levantava-me outra vez para ir ao escritório para verem a minha
cara, voltava. Depois o Clovis vinha chamar-me para pagar uma taxa
nem sei bem de quê. Mais mil e quinhentos francos e mais um bilhete
na mão. Depois desaparecia e aparecia pedindo quinhentos francos
para pagar o saco que ele tinha trazido para meter as minhas malas
que tinha todo o aspecto de ter sido apanhado do lixo. Desaparecia e
chamava-me outra vez e dizia-me, pela enésima vez, para eu ser firme
do outro lado e para ligar ao embaixador se fosse preciso. Eu dizia
que já tinha falado com ele mas ele repetia-se tanto que era quase
como se não acreditasse em mim. E entretanto a Bicicleta já estava
do outro lado.
O sol dava o seu melhor para nos fazer
sofrer quando alguém finalmente gritou “La Liliane”, o nome do
meu barco. Dei dois mil francos ao Clovis, despedimo-nos, ele pediu o
meu correio electrónico, e entrei na lancha. A corrente era tão
forte que seguíamos na diagonal, como se subíssemos o rio, para
andar sempre em frente.
Tinha lido acerca daquela passagem de
fronteira. Tinha lido que era o caos total mas que, se uma pessoa
mantivesse a cabeça fria, era uma experiência pela qual valia a
pena passar. Como mantenho quase sempre a cabeça fria, achei que
podia ser algo interessante. Contudo, ao que parecia, os maiores
tumultos eram quando havia o ferry
que levava mais gente de cada vez e uma pessoa chegava do outro lado
como se de um mar desembarcássemos num oceano de gente a pedir para
levar as nossas malas, para nos vender isto ou aquilo. O ferry
já não existia e, segundo o Gauthier, também não havia mais
possibilidades de passar de um Congo para o outro, sendo que todas as
outras fronteiras estavam fechadas. De todo o modo, pela experiência
ou não, eu precisava mesmo de ir a Kinshasa para fazer um passaporte
novo.
“Okay, hora da verdade”, pensei,
quando vi o cais do outro lado já perto, lendo “Kinshasa, Capital
de la Francophonie”. Saí do barco e vi a Mónica encostada a um
muro a quatro metros. Fui buscá-la e estacionei-a frente à La
Liliane, recusando simpaticamente a ajuda dos rapazes de bata branca
que queria transportar as minhas malas. Meti tudo na Bicicleta e
entrei pela ponte de ferro onde um polícia só com um dente em cima
e dois em baixo, de boina azul, ao fundo, inspecionava os
passaportes. Pegou no meu.
- Tens carta de residência do Benim? -
perguntou.
- Não.
- Tu tens de tirar o visto no teu país
de residência! - aqui vamos nós!
- Sim, mas eu deixei Portugal já em
Fevereiro... eu já falei com o cônsul e ele falou com o senhor Joe
Cottongollo e ele disse que não havia problema – respondi.
- Não... há problema, sim –
respondeu, secamente. Mandou-me descer as escadas e quando o fiz
apareceu um méne a vender não sei quê e outro a pedir-me o cartão
de vacinas. Dei o meu cartão, ele passou-lhe a vista e eu percebi
que ele estava à procura de alguma coisa, para me dizer algo do
género de “Ah, mais não tens a vacina contra quistos no queixo”
e tirei-lhe o cartão da mão.
Fui encaminhado para um escritório onde
uns esperavam para ser expulsos e outros tentavam explicar-se para
evitar tal desígnio. O guarda que estava responsável por mim devia
ter défice de atenção ou algo do género porque tratou do meu caso
aos poucos em p'rai vinte tentativas. O pessoal era simpático e
senti que ia correr tudo bem. Expliquei que se tivesse tirado o meu
visto em Portugal ele teria explicado e que, no fundo, o meu visto
tirado no Benim era válido. Se alguém tinha cometido um erro tinha
sido a malta de Cotonou em dá-lo. Esperei duas horas, vendo pessoal
a entrar e sair, vendo o meu guarda a sair com o meu passaporte três
ou quatro vezes. Pediu-me para escrever o meu trajecto e assim o fiz,
referindo que de seguida iria para Angola. Talvez se tivesse dito que
ia para Portugal as coisas tivessem sido diferentes.
Liguei para a embaixada às três da
tarde para perguntar até que horas podia ligar caso as coisas dessem
para o torto.
- Pode ligar a qualquer hora.
- Então posso ligar tipo às seis ou
sete? - perguntei, sendo que não me admirava que o meu processo se
arrastasse.
- Não, ligue até às três e quarenta e
cinco – respondeu.
Esperava, esperava, e o homem não me
dizia nada. Estava cá fora a comprar um cartão para o telemóvel
quando ele me perguntou o que é que eu tinha para fazer em Kinshasa.
“Bem... além, de querer conhecer a cidade e de ter de lá passar
para seguir viagem, tenho de fazer um passaporte novo na embaixada e
depois fazer o visto de Angola”, respondi. Ele voltou a desaparecer
e apareceu passado dez minutos a perguntar como é que ia para Angola
se não tinha páginas para o visto. “Eu vou fazer um passaporte
novo na embaixada”, voltei a dizer. Pensava se deveria ligar ao
cônsul e pedir-lhe para vir lá de qualquer maneira, mas as coisas
não pareciam estar más e chamar o cônsul podia ser visto como
hostil.
Voltei para o escritório, sentei-me na
cadeira de plástico e ele voltou, desta vez com cara de quem já
tinha uma resolução. “Pronto para seguir?”, perguntou-me um
colega dele com um sorriso. “Fixe, estou livre, e nem sequer me
pediram nenhum suborno”, pensei. Este pensamento atravessou-me de
uma forma muito breve e esbarrou de frente num muro quando percebeu
que o guarda que tinha o meu passaporte deu um breve olhar ao seu
colega que dizia algo como “Não digas isso!”
- Bem... - disse, com o meu passaporte na
mão e uma folha dobrada em dois dentro do mesmo – Tu vais voltar
para Brazzaville – voltar para Brazzaville? Com aquele olhar de
“Não digas isso” percebi que talvez houvesse algo mais. Mas,
ainda assim, aquela notícia foi como se eu estivesse a chegar à
meta da maratona e de repente alguém me agarrasse pelos cabelos com
tanta força que eu desse uma cambalhota para trás.
- O quê? Mas... não pode ser... o meu
visto é válido! - disse, incrédulo. Não acreditava naquilo! Eu
tinha tirado dois vistos para Kinshasa! Dois! O primeiro expirou, fui
tirar outro, foi o cabo dos trabalhos, mas no final tirei-o e ele era
válido! Duzentos e vinte e cinco euros pelos dois vistos! Mas que se
foda isso, se eu voltasse para Brazzaville tinha de voltar a
Portugal!
- Sim, vais voltar para Brazzaville. Por
duas razões. Porque não tiraste o visto no teu país de origem e
porque não tens páginas no teu passaporte para o visto de Angola.
Se ao menos tivesses o visto de Angola... mas não tens.
- Mas eu... mas eu disse-lhe que ia fazer
um passaporte novo e que depois tirava o visto! Espere, espere um
minuto... - disse, tirando o telemóvel do bolso. Saí do escritório,
marquei o número da embaixada.
- Sim?
- Eles estão a dizer que me vão mandar
de volta para Brazzaville! O cônsul pode vir vá? - pedi, a
adrenalina a dançar sete valsas no meu sangue.
- Ai, espere aí que ele já vai
buscá-lo! - disse a senhora, afogueada.
- Por favor, espere só dez minutos, o
cônsul vem aqui e podemos conversar! - pedi, em desespero. Não,
eles não me podiam mandar de volta! Que é que eu ia fazer? Não
tinha embaixada para fazer um passaporte novo, não podia fazer nada!
- Não, você tem de ir já, o barco está
à espera – disse, e levantou-se, pegando-me gentilmente no braço.
Eu pedia para esperarem mas apareceram mais dois guardas para me
escoltarem. Pegaram na Bicicleta, saímos para fora. Uma mulher saiu
de um escritório onde anteriormente eu tinha visto o meu guarda
entrar com o passaporte.
- É esse o português? Tens de ir! Nem
tens o visto de Angola! - atirou, como se tivesse um prazer mórbido
qualquer naquilo. Liguei de novo.
- O cônsul já vai a caminho, aguente
aí, espere aí! - gritava a senhora do outro lado, enquanto os
guardas me tentavam empurrar para seguir caminho. Estava tudo a
acontecer a mil à hora. O cônsul tinha de aparecer e salvar-me no
último minuto, tinha de ser, era esse o desfecho espetacular que eu
merecia, não aquilo! Ia correr tudo bem!
Ou será que ia?
Ia caminhando devagarinho, sempre
pedindo para esperarem só cinco minutos, só dois minutos!
Quando chegámos à ponte de ferro que
dava para o barco deixei a Bicicleta tombar de propósito, aqueles
segundos podiam ser preciosos. Demorei o meu tempo a levantá-la mas
eles disseram a um velho de bata branca para me ajudar. Estava na
ponte, o barco estava ali. Entrei no barco. Lembrava-me dos filmes,
quando alguém está prestes a morrer e pede que não o matem. Nos
filmes penso sempre “Ele sabe que não tem hipótese, porque é que
ao menos não aceita isso com dignidade?” Eu não ia morrer... e é
certo que não quero estabelecer, de forma nenhuma, qualquer tipo de
comparação com o desfecho... Mas o que é certo é que as minhas
palavras, os meus pedidos de espera, era também completamente em
vão. Mas temos de tentar, sempre.
Entrei no barco. Não, o cônsul não
chegaria a tempo.
- Vais ter de pagar pelo transporte
disto! - atirou um rapaz.
- Não! - lancei-lhe. Puta que o pariu!
Esse barco era o que levava o pessoal que era expulso do país.
Muitos deles sem um tostão no bolso. Mas como eu era branco, talvez
tivesse dinheiro comigo, e o méne queria ficar com ele.
- Então vou ficar-te com a bicicleta! -
disse.
- Vamos ver... - respondi, entre dentes.
E o barco partiu.
Andou dois minutos ao longo da costa,
deixou os polícias que me tinham escoltado e largou em direcção a
Brazzaville. Sentei-me encostado à janela. Uma rapariga apenas.
Perguntei-lhe porque é que não tinha podido entrar, ela disse que
não sabia. Mais tarde, quando chegámos, percebi que era porque ela
não tinha visto. Dantes não era preciso visto nenhum para as
pessoas do Congo-Brazza, agora era preciso um visto de quase
cinquenta euros, uma fortuna. Perguntei-lhe se o rapaz lhe tinha
pedido dinheiro pela viagem e ela respondeu vagamente, dizendo que
alguém a esperava do outro lado.
Via Kinshasa a ficar mais pequena e
percebi que tinha mesmo acabado. Encolhi os ombros e sorri. Não
estava contente, mas pensei no dia que estava a ter e achei tudo tão
incrivelmente extenuante e potente que tive de sorrir perante aquela
merda toda. “Se ao menos tivesse ligado ao cônsul mais cedo”,
pensei. Mas não teria feito diferença nenhuma. Porque ele ligou-me
passado uns minutos, depois de chegar ao cais e falar com o pessoal,
estava eu a chegar ao lado de Brazzaville. “Pois, parece que é
mesmo a lei, não poderia fazer nada, desculpe...”, dizia. “É
ridículo, eu sei, mas é assim... de todo o modo eu submeti o seu
caso para o Ministério de Negócios Estrangeiros. Já agora, se não
é indiscrição, quanto é que pagou pelo seu visto? Setenta e cinco
mil francos? Sinceramente, pensei que tivesse sido mais. Bem, boa
sorte”.
Não teria feito diferença ter-lhe
ligado mais cedo. Podia arrumar essa. Mas havia todo um número de
erros e acidentes que não podia arrumar de forma tão ligeira.
Arrumei-os na mesma, é certo, mas munido de estratégias mentais que
me permitiam ver a realidade e não me focar em tudo o que podia ter
sido. Toda uma série de erros que tinha levado a isto...
Estive na Nigéria dois meses, um desses
meses a escassos quilómetros da fronteira camaronesa à espera que a
mesma abrisse, todos os dias a não fazer nada. Podia ter aproveitado
a espera para ter dado um salto a Abuja e fazer um passaporte novo na
Embaixada de Portugal. Mas, enquanto esperava, a fronteira poderia
abrir a qualquer altura, e se abrisse eu passaria para os Camarões,
Gabão, Congo, e teria espaço suficiente no passaporte para chegar a
Angola, onde faria um passaporte novo. Quando tive de voltar ao Benim
por não conseguir entrar nos Camarões podia ter feito um visto do
Togo de um mês em vez de chegar à fronteira, fazer o visto de uma
semana, gastando uma página, e depois prolongar para um mês,
gastando outra página. Mas não sabia que os serviços de emigração
do Benim iam estar baixo, que ia lá ficar preso uma semana, e que
precisaria de uma página extra para um visto de saída do país...
Podia também ter descolado esse mesmo visto no Togo e ter ficado com
uma página extra. No Togo descolei-o todo mas voltei a colá-lo,
pensando que era melhor usar esta estratégia só quando fosse mesmo
necessário. Não pensei que a cola fosse mudar de ideias e
agarrar-se de tal maneira que, quando tentei retirá-lo novamente no
Gabão, levasse partes da página do passaporte consigo,
impossibilitando tal empreitada. Podia ter dito que pagava os tais
duzentos ou cento e cinquenta dólares para que me deixassem entrar
no Congo-Kinshasa... mas não faz parte da minha natureza ceder à
primeira a estes avanços por detestar este tipo de sistema. Tenho de
dizer que, se soubesse que o desígnio seria este, tinha pago esse
dinheiro, por mais que deteste a ideia. Porém, resisto sempre até
ao fim. Acontece que, neste caso, o fim passou por mim e eu nem dei
por ele.
Podia ter feito isto tudo, mas não fiz
nada, e estou em paz com tudo. A única coisa em que me desleixei
mais foi em não ter feito o visto de mês para o Togo no Benim. De
resto, são todas circunstâncias que só se tornam evidentes quando
tudo já aconteceu. Mesmo essa possibilidade não parecia tão
premente quando eu achava que podia contar com a descolagem do visto
do Benim e da Nigéria.
Por isso não me massacrei nem castiguei
sobejamente. Faz parte da minha natureza retirar aprendizagens de más
experiências, mas não de sofrer com elas desnecessariamente.
Agora faltava voltar a entrar no
Congo-Brazza, se já tinha um carimbo de saída.
Quando atracámos peguei na bicicleta e
segui um homem que tinha o meu passaporte. De acordo com as tradições
circenses da África-Burocrática, andámos de escritório em
escritório, voltando algumas vezes para o mesmo, e ninguém sabia o
que fazer. O homem que tinha o passaporte conseguiu livrar-se de mim,
entregando o meu documento a um colega seu e fiquei com o pequenito,
que dizia que não sabia o que fazer.
- Aqui diz “número de entradas” -
dizia eu – e à frente está em branco, ninguém escreveu nada.
Pode querer dizer que são entradas múltiplas. Nesse caso podiam
meter-me um carimbo novo de entrada no país e estava feito.
- Não... este visto é só de uma
entrada, não podemos fazer isso...
- Então que fazemos? - perguntei. Ele
estava confuso. Primeiro falou em eu ter de pagar algo porque tal
situação era um prejuízo para o estado do Congo. “Prejuízo em
quê?”, perguntei. Ele desconversou e levou-me a outro escritório
onde, após explicar a situação, o seu interlocutor ficou em
silêncio, contemplando. Foi quando me ligou a senhora da embaixada
em Kinshasa, para me tentar dar o número da cônsul honorária em
Brazzaville, altura também em que entrou uma mulher aos berros no
escritório. Saí para ouvir melhor a minha compatriota e só vi uma
data de gente a entrar atrás da mulher, os berros a subirem de
volume e punhos a elevarem-se no ar. Não estava fácil. Quando
voltei o pequenito disse para eu esperar lá fora um bocado porque
ele precisava de reflectir acerca do que fazer. Foi quando eu percebi
que não tinha comido nada o dia todo. Comprei um copo de meio litro
de amendoins e fui manjando enquanto falava com o meu irmão. Já que
teria de voltar a Portugal, achei que podia fazer surpresa, pelo
menos, aos meus pais e à Graciete. Não sabia se ia conseguir,
porque imaginava a Graciete a ligar e eu a não resistir não
desabafar com ela. Mas, pelo sim, pelo não, dei um toque ao meu
irmão, que seria o meu cúmplice, e quando ele ligou discutimos
hipóteses. Ele ficou de ver alguns voos na internet
e desligámos, para eu ir perguntar ao pequenito como é que era esta
VIDA. Ele levou-me para outro escritório e disse que eu deveria
pagar um valor simbólico para facilitar a situação e que depois
estaria livre. Entra aqui a dialética do princípio, novamente.
Noutras alturas eu não pagaria nada. Só que tinha tido o dia que
tinha tido e estava entre fronteiras e achei, na altura, que o mais
sensato para me desenvencilhar de uma forma que fosse minimamente
imediata e confortável era não fazer ondas e pagar. Considero-me
uma pessoa de princípios a tal ponto que percebo que muitos dos
princípios seja de quem for dependem apenas do quão longe eles
estão dispostos a ir para os defender. Salvaguardando raras
excepções, acredito que qualquer pessoa possa abdicar de um
princípio dependendo da situação que o requer. A única diferença
é até quão longe estamos dispostos a ir antes de abdicar deles.
Parece uma ideia típica de alguém pobre em ideologia, mas basta
pensarmos que quase toda a gente é contra o roubo mas, num clássico
exemplo, talvez roubasse medicação necessária para um ente querido
se não tivesse dinheiro e, mais radicalmente, quase toda a gente é
contra o assassínio mas talvez o cometesse se isso salvasse a VIDA
dos seus familiares. Há linhas para tudo.
Dei-lhe
dez mil francos, quinze euros, e ele disse que eu podia ir embora e
estava tudo bem.
- Então
e quando eu quiser sair do país e eles virem este carimbo de saída?
- perguntei.
- Não
tem problema, não te preocupes... - respondeu. Respostas destas, em
África, abundam, e eu sabia mais do que isso.
- Não...
não me parece suficiente... imagine que eu compro um bilhete de
avião, chego ao aeroporto e eles vêm que, supostamente, já saí do
país... vai dar raia!
- Não,
não dá nada...
- Mas
pode dar!
- Queres
que escreva em cima do carimbo que está anulado? Eu escrevo – e
escreveu “Annulé” em cima do carimbo vermelho.
- Meta o
seu nome, por favor.
- Não é
preciso!
- Assim
eles podem dizer que fui eu a escrever isso.... qualquer pessoa pode
pegar numa caneta e escrever “Anullé” em cima de um carimbo!
-
Pronto, está bem... - e escreveu C. Erik à frente.
- Meta o
seu número de telefone à frente.
- Não é
preciso!
- Então
dê-me o número de qualquer maneira. Assim se eles duvidarem eu
posso ligar-lhe e o senhor explica-lhes que é verdade. E que é que
lhes digo?
-
Diga-lhe que você tentou apanhar um barco mas era tarde demais,
passava das dezasseis, e teve de voltar a entrar no território e nós
anulámos o carimbo de saída.
- Não é
mais fácil dizer a verdade? Que cheguei a Kinshasa, não me deixaram
entrar, e tive de voltar para trás?
- Não,
é melhor dizer o que lhe disse – respondeu. Ia ter de me aguentar
sem essa certeza até embarcar.
E
estava de volta a Brazzaville. Liguei ao Gauthier, ele ainda estava
na garagem, fui ter com ele, passando pelos pequenos campos em
cultivo. Precisava agora de um cyber-café
para comprar um bilhete de avião para o mais cedo possível.
Caminhámos um pedaço com alguns amigos seus que tinham arreado e
quando parámos “uns minutos” para esperar por alguém eu decidi
ir andando e combinei com o Gauthier encontrarmo-nos no cyber.
Comprei
um bilhete de avião para o dia vinte e cinco de Dezembro. De
Brazzaville para a Etiópia, daí para a Itália e daí para
Portugal, chegando vinte e cinco horas depois. Ah... se tivesse
chegado dois dias antes podia, ao menos, passar o Natal em casa.
Paciência.
Entrámos
num táxi e eu comecei a organizar as ideias.
Foda-se,
que dia tinha tido! Primeiro as merdas todas com a Bicicleta ao mesmo
tempo em que pensava que talvez pudesse não entrar no Congo-Kinshasa
pelo que o Clovis me tinha dito acerca do meu visto tirado no Benim.
Depois a resolução com a Bicicleta e a suposta resolução com a
entrada depois de ter falado ao telefone com o cônsul. Depois a
chegada a Kinshasa e as horas todas de espera e a fatalidade de não
poder entrar. Depois os problemas em voltar a entrar no Congo-Brazza.
Foda-se!... Um dia inteiro com um nervoso miudinho a remoer cá
dentro, como um moinho a dar-me, aos poucos, nos veios do coração,
fosse por uma merda, fosse por outra... E tudo em vão. Queimei
sessenta ou setenta euros, mais duzentos e vinte e cinco para dois
vistos do Congo-Kinshasa, mais seiscentos e noventa euros para
regressar a Portugal, dois ou três meses de atraso na viagem e o
preço de regresso.
Não
estava contente, mas nunca dei por mim em real desespero. Sim, quando
me disseram pela primeira vez, que ia te de voltar a Brazzaville,
pode dizer-se que agi em desespero na medida em que tentei ao máximo
ficar. Mas não me ajoelhei no chão a chorar nem me agarrei às
grades com todas as forças que tinha. Fora um desespero controlado,
se é que tal existe. Porque a verdade é que, e eu nunca me esqueço
disto, eu estava ali porque queria. Tudo o que tinha acontecido tinha
acontecido porque eu tinha tido o conforto de poder decidir, um dia,
que me ia mandar África abaixo. E todas as outras cenitas que tinham
acontecido tinham acontecido porque eu, por mais experiente que possa
parecer ser, não consegui antecipá-las. Às vezes rio-me um bocado
com isto da experiência de viagem... Acho que a experiência de
viagem traduz-me, quase exclusivamente, em não bater mal à primeira
com o inesperado... de resto, geralmente, sinto que ando tanto aos
tropeções como o José que nunca saiu de casa.
Que dia
tinha tido... e que mudança de planos tão radical. A viagem ia ser
partida ao meio... o que tinha sido uma possibilidade anteriormente.
Quando estava em Lagos, na Nigéria, tinha equacionado voltar a casa
dois meses... depois quando estive retido no Benim também... mas
insisti, queria continuar. E continuei. Mas depois aconteceu-me isto,
e não tive mais solução. E por saber que não tinha tido mais
solução, estava tranquilo. O que digo é um bocado incoerente,
apercebo-me agora. Porque não tinha como não estar tranquilo, sendo
que se tivesse opção e decidisse ir a casa, era porque queria ir,
então estava tranquilo. Não tendo opção tive de voltar, pelo que
estava tranquilo. Méne, estou aqui a embrulhar-me todo. Talvez
aquilo que eu queira dizer é que, não tendo opção, sei que não
desisti não subir as escadas, simplesmente fui empurrado borda fora.
E já que tinha sido empurrado borda fora, ia mergulhar com estilo,
foda-se! Comecei a organizar as ideias no meio daquele engarrafamento
infernal, dentro daquele táxi verde. Ia estar, no mínimo, dois
meses em Portugal. Ia traduzir o Daqui Ali Asiático para inglês e
com as vendas pagar, pelo menos, parte da viagem. O que era algo que
eu nunca faria se não fosse a casa, sendo que se chegasse de vez era
no Daqui Ali Africano que eu me ia focar. Ia começar já a desenhar
um primeiro esboço do Daqui Ali Africano, que permitira uma
publicação mais breve após o regresso. Ia tentar ir ao 5 Para a
Meia-Noite e promover com força o Daqui Ali. O pessoal da televisão
é imprevisível e provavelmente nem responderiam a um e-mail
meu, mas o que é certo é que já me tinham convidado com data
marcada, só que eu estava quase a chegar à Mauritânia e nunca iria
a Portugal de propósito. E ia acabar o “Ventre”! O meu longo e
grande sonho desde há tanto, tanto tempo... acabar um romance. Tenho
três ou quatro romances inacabados, um deles com quase trezentas
páginas... a maldição de novas ideias fez-me sempre saltitar. Mas
estou a adorar demasiado o “Ventre” e vou acabá-lo! Sei que sim!
Já não estou agora sentado na cadeira de vime na véspera de Natal.
Estou num avião entre a Etiópia e a Itália a beber copos de vinho
e a ouvir música. E sei que, como quero fazer com que estes tempos
em Portugal não sejam tempo perdido, vou acabar o romance... a menos
que bloqueie totalmente em termos de ideias. Mas não será por falta
de horas em frente ao computador. E eis que, com estas ideias todas,
estava completamente na boa por ir a casa! Não vou ao ponto de dizer
que estava contente por aquilo ter acontecido, não, que se foda
isso, mas como tinha já encontrado como não perder aquele tempo,
estava na boa.
E todos
estes pensamentos e ideias e projectos eram coroados com a certeza de
que voltaria. Sim, voltaria, claro que sim! África revelava-se uma
amante misteriosa de personalidade fogosa. Dávamos as mãos,
subíamos uma árvore e víamos o pôr-do-sol a beber uma garrafa de
vinho que tirávamos de um cesto pendurado num ranco. Os seus cabelos
dançavam com a brisa à frente da minha cara, às vezes
enganchavam-se nas minhas pestanas sem me magoar, outras vezes
agitavam-se pacificamente frente às minhas narinas, imprimindo-me um
forte aroma a alperce. O ranco partia e o cesto despedaça-se e
ríamo-nos, desiquilibrando-nos um pouco. Descíamos da árvore e com
o anúncio da noite despíamo-nos e o dia nascia dentro dos nosso
corações o serão todo, até trazermos ao nosso olhar a verdadeira
noite onde o sonho reinava. Mas doutras vezes África pedia-me que a
encontrasse no meio do deserto às duas da tarde e aparecia só às
seis. Eu perguntava-lhe porque tinha demorado tanto e ela reagia como
se eu lhe devesse alguma coisa ou tivesse feito algo de mal. Mas eu
gostava dela, e tolerava isso. Caminhávamos deserto fora e eu,
sequioso, desesperava vendo-a verter água sobre os cabelos, como se
eles fossem mais importantes que eu, como se tudo fosse mais
importante que eu. Chegávamos à estrada, entrávamos no carro e
sentávamo-nos em silêncio, eu a pensar no que teria feito de mal.
Mas eu
voltaria, sempre. África tinha as mais variadas faces e se as boas,
tão frequentes, me faziam sentir bem-vindo, as más, que apareciam
apenas de quando em vez, faziam-me sentir posto à prova, fazia-me
sentir que ainda não percebia tudo, que ainda não conhecia tudo,
que ainda não me tinha testado o suficiente. E, para me conhecer
verdadeiramente, preciso de todo o tipo de novas situações. Não
quero conhecer nuances
de mim que aparecem derivadas de pequenas variações no nível de
conforto que experiencio. Não, que se foda isso. Quando alguém
atira a minha alma à parede eu quero ver como é que ela cai. Quero
conhecer-me todo e isso só me aparece quando abraço tudo o que pode
acontecer em situações extremas. Claro que não forço nada
disso... porque nos momentos em que me estou a conhecer tudo o que eu
quero é que aquilo não esteja a acontecer, tudo o que eu quero é
paz e sossego. Porque sou só um humano que, por mais que tenha algum
talento em ver o cómico e interessante das vicissitudes da VIDA
enquanto elas ocorrem, quer estar bem...
Por
isto tudo me lanço em aventuras destas... Porque sei que o mais
provável é eu ter experiências incríveis que me deem a volta à
cabeça. E porque sei que sofrer um pedaço é o preço que tenho a
pagar. E porque esse preço costuma trazer consigo grandes
aprendizagens e sorrisos futuros quando em memória. Foda-se, adoro
viajar! Conheci uma italiana que vive em Moçambique e fala português
há pouco na fila para o raio-x às bagagens. Sentámo-nos a
conversar as duas horas que esperámos para embarcar e ela disse que
quando falava nas minhas viagens parecia que os meus olhos sorriam.
Gostei de ouvir isso.
Estou a
sentir-me bem, méne! Talvez o vinho já esteja a dar cartas para os
meus neurónios que não sabem jogar póker, mas a verdade é que,
neste avião onde nunca pensei estar, me sinto bem. Ouço Ornatos
agora e amanhã vou-te fazer chorar. Pela melhor das razões.
00h00,
6ª, 26-12-14
A voar
sob o Egipto, a caminho de ti.
FIM DA
PRIMEIRA PARTE
Aventura incrivel.
ResponderEliminarAfrica minha...força pedro