Bem...
como escrever sobre tudo isto?
Estou sentado na casa em construção
onde encontrei o Ivon primeiramente. Cheguei aqui na Sexta-Feira
depois de mais uma estafa, mas consegui. Eram já as quase seis horas
e encontrei o meu amigo a cimentar o chão. Vi um estandarte sem
bandeira e perguntei-lhe se ele era o chefe.
- Bem, sim, sou o chefe... chefe de
família, brevemente serei o chefe desta secção de Ayem, já tenho
o estandarte, como vês, mas ainda não tenho a bandeira. Precisas de
alguma coisa? - perguntou-me o homem de bigode, pera e uma touca
vermelha à Tupac.
- Sim, gostaria de saber se é possível
ficar convosco aqui esta noite. Venho de Portugal de bicicleta, a
caminho da África do Sul, e estou cansado, e já é quase
de noite...
- Sim, se quiseres podes ficar aqui. Mas
a verdadeira chefe de Ayem está ali uns duzentos metros, se quiseres
ir ter com ela e perguntar-lhe, tudo bem, mas se quiseres ficar aqui,
tudo bem também – respondeu.
- Pois muito bem, nesse caso fico então
convosco, obrigado.
- Porreiro, vou dizer aos miúdos para te
prepararem o quarto.
A aldeia estava a trinta quilómetros da
próxima vila ou cidade, Lopé, e uns quarenta da última vila por
onde eu tinha passado, Junkville. Tinha acabado de atravessar uma
ponte que cruzava um grande rio pejado de grandes árvores pelo seu
meio. O sol estava cansado e o céu beneficiava disso, dando telas a
quem as quisesse. Receando o eminente último sopro do astro
perguntei se podia tomar banho num instante enquanto os miúdos
preparavam o quarto. O Ivon chamou o Sylvan, apresentou-o como o seu
quarto filho, e mandou-o comigo. Descemos a rua cem metros, entrámos
por um carreiro à esquerda e demos com o ribeiro. O Sylvan era um
rapaz de vinte anos, corpo de futebolista e rosto de rapaz simpático,
e tinha já um filho com a filha da chefe.
Depois de tomar banho e assentar
arraiais a noite apresentou-se e preparava-me para me sentar fora do
meu quarto quando o Sylvan perguntou se eu queria ir dar uma volta.
Descemos até à outra parte da aldeia, mais três casas, e mais umas
quantas à frente, muitas delas abandonadas. Sentámo-nos meia hora
com a chefe, a filha da mesma, que era namorada do meu amigo, um
senhor mais gordo e uma senhora mais velha. Estávamos quase de
volta, passando por baixo do mangueiro que os putos costumavam
fustigar todas as manhãs à cata de mangas para vender a trinta
cêntimos quatro quando o Sylvan disse que era um pena eu bazar no
dia seguinte, porque iam ter uma cerimónia da qual eu podia fazer
parte e que para eles era um prazer que assim fosse. O meu primeiro
instinto foi dizer “Pois, obrigado, mas eu tenho de ir...” Estava
ainda filado em passar o Natal em Luanda com a Tânia. Mas a viagem,
apesar de estar a correr muito bem, não estava a correr com a
velocidade que eu tinha previsto, pelo que Luanda era já uma miragem
de qualquer maneira. E aquela possibilidade era uma realidade. Decidi
então seguir o meu estilo mais habitual e abri-me a essa
oportunidade. Não fazia ideia do que era, mas lembrei-me de Ayem
Oboukué, quando uma rapariga me queria falar de uma cerimónia
qualquer e a chefe não queria que ela mo dissesse. Tinha de ser, no
mínimo, peculiar, se era alvo de sigilo.
- Okay... então se não é abuso da
vossa hospitalidade, eu gostava de passar aqui a noite amanhã também
– respondi.
- Não, não é abuso nenhum, é um
prazer nosso – respondeu. Mas, mais uma vez lembrando-me da chefe
de Ayem Oboukué, questionava-me se o Ivon estaria aberto também a
essa possibilidade.
Quando chegámos sentei-me com ele na
sala de estar. A aldeia, apesar de de completamente deslocada, tinha
electricidade, e a sala era uma confortável pequena divisão com
sofás azuis a toda a volta, uma televisão pequena com alguns canais
franceses e outra maior inutilizada numa estante castanha. Um pouco
por todo o lado havia fotografias na parede. O Ivon disse-me que era
uma espécie de feiticeiro e explicou-me mais ou menos o que se
passava nas cerimónias.
- A propósito... - disse eu – O Sylvan
falou-me de uma cerimónia que vocês iam ter amanhã... e que eu era
bem-vindo... se não fosse um abuso gostaria de ficar mais uma noite.
- Se tu quiseres... tudo bem –
respondeu. Disse-me que na cerimónia toda a gente tomava da “Boire
Sacrée”, bebida sagrada, e que isso fazia as pessoas verem cenas,
cenas essas que eram, ou podiam ser, manifestações do Buti,
Deus. Fiquei com um bocado de receio. Falando em termos ocidentais o
que eles iam fazer era mandar drogas psicadélicas. Fiquei com receio
porque estava num ambiente novo para mim, não sabia o que era ao
certo a Boire Sacrée e por isso não fazia ideia do que me esperava.
Mas era uma oportunidade única, que talvez não fosse aparecer tão
cedo. “Que se lixe, vou alinhar e ver onde isto me leva...”,
pensei.
- Tu és capaz de não ver muita coisa...
se calhar vais ver umas estrelitas ou algo assim, mas eu é que vou
ver...
- Ah, mas eu gostava de ver... -
respondi. Se era para ser, que fosse a sério.
- Ai é? Okay, então tu vais ver –
respondeu. Foi depois buscar uma garrafa de whiskey,
serviu-me um trago e ficámos à conversa um par de horas,
contando-me ele das doenças que curara, do pai que tinha morrido há
dois anos, e o seu percurso de VIDA.
No dia seguinte, quando acordei
sentei-me fora do meu quarto a tentar escrever, mas o Sylvan e o
David, seu irmão, apareceram e estava a mostrar-lhes as fotografias
do deserto quando o Ivon veio perguntar aos filhos se não havia
trabalho para fazer. Era preciso preparar as festividades. Passei as
próximas horas até ao almoço com o Sylvan no mato a cortar tocos
para queimar e trazê-los para a aldeia e depois no que eles chamavam
de Hangar, a última casa que era um salão de festas, um templo,
sítio para córtiré, essas cenas todas, a esfiapar palmeiras para
as pendurar no tecto com as folhas a cair em bom estilo. O Hangar
era, tal como o resto das casas, de madeira,
mas aberto na ponta do lado da estrada e aberto por uma porta do
outro lado. Por dentro estava pintado em tons rosa e azuis, alguns
peixes e rabiscos grossos como cordas dançantes a acabar num
círculo, onde afixariam, mais tarde, espelhos. No canto do lado de
lá estava uma poltrona, o sítio do chefe, e para a esquerda da
mesma um banco branco onde se sentaria o escolhido para as visões, e
depois mais uns bancos onde ficava o resto da trupe. À frente dos
banco estava o Buti,
quatro ou cinco cestos rica e delicadamente decorados cheios de
adereços de couro e guizos brancos, penas, peles de animais e toda
uma parafernália como eu nunca tinha visto.
Fui
descansar um bocado e quando regressei, às três e pico, estava tudo
quase pronto. O Ivon disse-me que eu me ia vestir com eles e que para
isso tinha de ir ali abaixo comprar um cinto na mercearia. Sem sequer
achar estranho uma mercearia vender cintos lá fui com o Sylvan e
outro dos quinze irmãos comprar um cinto branco com taxas prateadas,
contente com a surpresa de que a experiência ia ser mais à séria.
Não fazia era ideia do quanto à séria seria.
De
tronco nu com os meus calções azuis o Ivon começou por amarrar-me
um grande lenço verde e amarelo à volta da cinta que deu depois a
volta por trás e amarrou no fundo das costas. Meteu-me depois uma
corda com umas decorações de madeira a tira-colo junto ao tronco,
uma touca de tecido vermelho e uma corda com umas missangas e uma
ponta a apontar para a frente à volta da cabeça. Enrolou
a pele de um animal à volta do meu cinto e deu-me
depois um bastão de madeira de palmo e meio com uma cabeça
esculpida numa ponta que deveria levar na minha mão esquerda e uma
pequena vassoura de um palmo para a mão direita. O resto do pessoal
tinha calções vermelhos e no tronco não estavam muito diferentes
de mim.
Primeiramente
sentámo-nos todos lado a lado, encostados à parede, o Ivon no seu
canto de chefe. O Sylvan, que estava numa fase inicial de um processo
relacionado com tudo aquilo, ajoelhou-se perante o pai, do outro lado
do Buti,
comeu uma mãozada do pó que dava origem à Boire Sacrée, passou a
mão pela cabeça, disse umas preces e levantou-se. Depois
disseram-me para me levantar, pegar num pacote de vinho que estava no
meio e passá-lo ao miúdo da ponta. O miúdo de quatro anos
esfregava-o de cada lado do tronco, fingia que bebia e passava para a
direita, seguindo o pacote assim até ao Ivon. O mesmo se passou com
um maço de cigarros, uma cerveja e uma nota de mil francos, que
também ia à boca. Depois foi a minha vez de me ajoelhar, foi-me
dito alguma coisa, perguntaram
o meu nome de família, abençoaram-me
e era altura de partir.
Seguimos
em fila indiana estrada fora, descalços, com dois dos sete irmãos a
anunciar a caminhada com urros de cones que levavam e uma sineta.
Andámos duzentos metros e metemos para o mato onde assentámos
frente a uma enorme árvore com raízes salientes em pirâmide. Fui
mandado sentar e à minha frente começou a montar-se um pequeno
estaminé com um espelho e algumas bugigangas enquanto o Ivon me
espalhava pó talco pelo corpo todo, pálpebras, parte de trás dos
joelhos – tudo! Depois de algumas rezas na língua local apareceu
um prato com a Boire Sacrée, a
substância
milagrosa, que era uma mistura do tal pó que eu tinha visto com um
líquido qualquer, atribuindo-lhe um aspecto de cevada muito espessa.
O pó vinha das raízes de uma planta que eles tinham no quintal. O
Ivon foi dando colherzitas a toda a gente menos a mim e, por
momentos, pensei que ele achasse que não era boa ideia eu meter-me
naquilo. Também não percebia porque é que só eu é que estava
pintado de branco.
Até
que... percebi.
Ele
disse para me levantar e segui-lo. Caminhámos em círculo, com
passos ritmados e pequenos, eu atrás dele, e ele virava-se por vezes
para me dar uma colherona da Boire Sacrée. Quando eu acabava de
comer ele dava-me outra e assim sucessivamente. Depois mandou-me
sentar e começou a perguntar-me se via algo. Foi aí que eu percebi.
Era eu
que ia ver cenas, e só eu! Eu estava de branco porque era o méne
que ia ter as visões que os outros depois interpretariam! No dia
anterior, quando eu disse que também
queria
ver, o Ivon deve ter decidido que seria eu em vez dele!
-
Olha para a vela, não desvies o olhar, e diz-me se vires alguma
coisa - dizia. Mas eu não via nada. “Se calhar sou demasiado forte
para isto”, pensei. Passado dez minutos levantei-me outra vez. Mais
umas voltas, mais umas colheradas. Sentei-me outra vez. Nada! O Ivon
aproximou-se e meteu um cone nos meus ouvidos, perguntando que ouvia.
-
O mar?... - respondi.
-
O mar? Okay, está a funcionar – respondeu, para minha surpresa,
sendo que ouvir o mar num cone é um bocado o que se espera. Às
tantas levantei-me uma última vez e desta quase que acabei com o
prato. Voltei a sentar-me e ele voltou a dizer para lhe dizer se via
alguma coisa. Ia trazendo objectos com padrões, como um pedaço de
madeira ou um boneco de missangas, e dizia para olhar para lá sem
desviar a vista. Como não estava a ver nada aproximou-se com uma
folha enrolada em triângulo e verteu-me o que parecia ser sumo de
lima ou algo do género nos olhos para estimular. Doía imenso, mas
tudo bem, eu estava todo dentro daquilo, viesse o que viesse! Depois
de ele se ter aproximado, perguntado o que via na palma da sua mão e
eu ter respondido que via pequenos riachos, comecei a ver padrões
nas coisas. Não alucinava, mas ilusionava. Isto é, não via coisas
que não estavam lá, simplesmente via padrões nas coisas que já lá
estavam. Algumas não tinham sentido nenhum como uma medusa, uma
figura humanóide sem sexo ou um cogumelo. Outras eram mais nítidas
e significantes como ter visto um homem debruçado sobre uma janela a
olhar lá para fora enquanto outro homem olhava para ele sentado numa
cadeira a um canto. Nesta o Ivon reconheceu ele e o seu pai e o
pessoal rejubilava e gritava “Básê, basê!” com euforia, algo
como “Amem”.
Eu
sou um céptico. Ser céptico não é não acreditar em nada mas
questionar tudo. Tenho cuidado tanto com o que vem ter comigo,
questionando a fonte de onde as pessoas souberam tal informação e
corrigindo sempre quando as pessoas dizem que em determinado país,
por exemplo as pessoas são
assim
em vez de tendem
a ser
ou muitas
pessoas são,
como com o que parte de mim, tentando (por vezes falhando) não falar
de coisas que não sei e tendo o cuidado de, se passo algo que que
alguém me disse sem verificar, dizer que me
disseram que
em vez de é
assim.
Para quem não é céptico, é fácil atribuir explicações e
associações a coisas cujo significado não é evidente, associações
estas, por vezes, religiosas. Ora em relação a videntes o meu
cepticismo permitiu-me ter, neste momento, uma posição de asco por
uns, e desdém por outros. Tudo porque já li bastante acerca de tais
processos e conheço a história de vários escândalos, mentiras,
farsas e embustes, conhecendo também os métodos que são utilizados
para ludibriar as pessoas. Alguém que diz a outrém que o filho
morto está a comunicar do além para depois lhe extorquir vinte ou
trinta euros devia ir preso porque está a mentir e manipular pessoas
numa posição extremamente vulnerável. O meu asco é nutrido por
pessoas que usam aberta e conscientemente esquemas de manipulação e
o meu desdém é nutrido por pessoas que se iludem. Pessoas talvez
com baixa auto-estima que veem num pseudo-dom uma maneira de se
sentir poderosas ou interessantes.
Em
relação ao que se estava a passar comigo no bosque, para mim é
simples de explicar. Se eu vir dez coisas, é provável que algumas
batam certo com alguma coisa. Eu vi uma medusa e eles adoraram porque
tinham uma planta no quintal que chamavam de medusa por a tal se
assemelhar. Quem tem a mente aberta e predisposta a acreditar nestas
associações, descartará tudo aquilo que não se enquadra e
agarrar-se-á com força a tudo aquilo que se enquadra.
Agora
com tudo isto... que sinto em relação ao Ivon, que acredita que tem
poderes videntes? Não sinto asco nem desdém. Não sinto asco porque
sei que ele acredita mesmo naquilo. Não sinto também desdém
porque, além de o conhecer, o que não deveria valer nada, ele vive
num ambiente completamente diferente do meu, uma cultura
incrivelmente distinta da minha, como me aperceberia com força ao
longo dessa noite e nos dois dias subsequentes. Agora, que interessa
que seja uma cultura diferente? Confesso que não sei ao certo.
Tento
não julgar seja quem for. Nem sempre é fácil, mas é o que tento.
Na nossa sociedade ocidental do tipo de pessoas que é me é mais
difícil não julgar são os videntes e espíritas e pessoas do
género. Acredito que ganham a VIDA a enganar os outros e não tolero
isso. A cena é que é-me mais fácil não julgar se alguém o faz
noutra cultura, porque noutra cultura eu já estou numa posição
mais longe de não-julgamento. Eu no Gabão, ou no Benim ou no
Paquistão assumo uma posição de observador e de interveniente mais
ou menos passivo. Como não sei ao certo como as coisas são, e como
não é meu dever ou lugar chegar a um sítio diferente do meu e
começar a dizer às pessoas como viver a sua VIDA, parto dessa
premissa de agir e ver sem intervir necessariamente a menos que tal
mo seja requisitado. Além disto ter os seus limites, naturalmente,
sendo que não ficaria passivo se visse um marido a espancar a
mulher, implica também manter-me fiel a mim mesmo, o que por vezes é
difícil. É necessário aí saber o que dizer, como o dizer, sem
mentir e sem
fingir acreditar em algo que não acredito.
Assim
continuei a seguir com as minhas visões sentindo, aos poucos, um
quente a apoderar-se de mim. Vinha aí mesmo a Boire Sacrée. Várias
cenas começaram a aparecer e quando havia algo que fazia mais
sentido a euforia do pessoal era quase contagiante, o que também me
fez perceber como alguém pode gostar de estar naquela posição,
pois é uma posição central, importante naquele momento. A dada
altura a Gina, mulher do Ivon, estava tão contente com algo que eu
tinha dito que me veio oferecer uma nota de quinhentos francos, que
pousou à minha frente. O Ivon ainda veio mais duas vezes meter-me
gotas nos olhos, para minha má sorte. Segundo ele ajudava a ver, eu
imaginava que talvez pela visão ficar turva dar aso a mais ilusões
ou alucinações.
O
tempo foi passando e, depois de uma torrente de visões, umas com
mais sentido que outras, era altura de partir. Levantei-me e percebi
que tinha dificuldade em caminhar direito. A partir desse momento não
estaria sozinho mais minuto nenhum até à manhã seguinte. Fosse
para ir apanhar ar ou para ir ao quarto-de-banho, tinha alguém
sempre, sempre comigo, o que na altura era um bocado inconveniente
mas que, agora, acho que é um pormenor bonito da tradição, sendo
que me pareceu evidente que não era por ser eu, mas pelo facto de
quem toma a Boire Sacrée ser dado a quedas e acidentes do género.
Cortei
o dedo do pé um bocado a subir a ladeira que dava para a estrada,
mas tudo bem. Estava a curtir mas o curtir ia passar rapidamente.
Quando chegámos à aldeia fomos para o templo e o pessoal dispersou.
Eu fiquei sentado no banco do vidente com o espelho à minha frente
com um ou outro sentados à minha beira e eu não sabia bem que se
passava. Sabia sim que me sentia a explodir de calor. Pedi para ir
apanhar ar e o David, o único de todos os irmãos que nunca foi à
escola, veio comigo. Sentámo-nos nuns troncos ao lado de onde
costumavam ferver a água e eu tentava manter a tranquilidade. Sentia
um desconforto estranho e novo. O mundo não era exactamente plano e
o pessoal queria que eu visse cenas. Sentia-me um bocado pressionado
com o David a dizer “Ali, olha p'ráli, que é que vês?”,
apontando para as nuvens ou para as folhagens de uma árvore. Quando
não era ele era alguém que passava e mandava o bitaite ou o Ivon,
que me dizia pela trigésima vez para lhe dizer se visse alguma
coisa.
Eles
tinham anunciado a cerimónia e esperavam pessoal a partir das sete.
Percebi que era por isso que o pessoal estava disperso e havia um
clima de paciência a transitar para a impaciência no ar. Às tantas
voltei para dentro e sentei-me no banco do vidente. A moca ia
aparecendo de outras formas e as coisas assumiam um tom um bocado de
bizarro. Estava escuro, havia velas um pouco por toda a parte, tudo
era um bocado pesado. A música que vinha de uma aparelhagem era
rápida de um instrumento de cordas africano que parece uma guitarra
em forma de pequena harpa e
inquietava-me.
O resto da família ia aparecendo aos poucos quando o Ivon me levou
para uma pequena sala contígua ao templo. Assustava-me um bocado
porque era pequena e tinha alguns artefactos que, apesar de,
conscientemente, eu saber que a onda deles era boa, me lembrava de
magia negra. Afastava tais pensamentos. Ou tentava. Aí sentámo-nos
com mais um irmão e ele ia tocando esse tal instrumento enquanto eu
ficava calado, tentando manter a calma e estar tranquilo. Apetecia-me
fechar os olhos mas sabia que não dormiria. De vez em quando ele
dizia-me para me levantar e eu tinha de fazer o que ele dizia, não
fosse ele o chefe. Dizia-me para imitar o seu filho e saltava um
bocado e baixava-me, e saltava. “Isto refresca-te. Senão
adormeces. No último salto cais com força com a palma dos pés e
punhos cerrados!”, dizia. A verdade é que me custava tanto fazer
aquilo como voltar a Portugal agora de gatas, mas no final sempre
ajudava um pouco. Isto tudo sempre com, claro, a pressão de ter
de ver coisas que não estavam a aparecer com a frequência que eu
imaginava desejada, com a excepção de um anjo que vi num
calendário. Fiquei um bocado aliviado porque sabia que era algo que
o Ivon ia usar mais tarde.
Quando
voltámos ao templo já lá estava a família toda. Sentámo-nos
todos em fila e ora esperávamos em silêncio que eu visse alguma
coisa, ora o Ivon dava uma palestra sobre o Buti,
ou sobre como estava destinado eu estar ali com eles, ora ouvíamos
música, ora se cantava. Foi mais ou menos nesta altura que o meu
estado de espírito deu uma grande volta. Para pior. Os meus
pensamentos começaram a formar-se à volta de conceitos
exasperantes. Não estava no meu meio e não estava confortável e
isso talvez me fizesse pensar em demasia. Pensava em morte. Muito.
Muito mais do que alguma vez, e com muito mais força do que alguma
vez. Abanava o cérebro para expulsar aquilo que se avizinhava mas
não conseguia. Por vezes colava a vista em alguma coisa como
sugerido e tinha algumas visões, e falando sobre elas afastava um
bocado a mente de tais pensamentos, o que me fez pensar que, se
estivesse com amigos e envolto em conversas, talvez a minha mente não
navegasse para tal morbilidade. Mas eu estava ali, e era quando
estava em silêncio que vinha tudo com uma força que me deixava
desesperado e extremamente assustado.
Não
sei a ordem dos pensamentos que me ocorreram, mas não conseguia
afastar a mente do facto de que eu ia morrer. E se agora em que
escrevo isto eu o sei na mesma, não deixo com que tome conta de mim
e tinja tudo de negro. É um facto que eu não posso alterar, e tudo
o que eu posso fazer com a minha VIDA é vivê-la ao máximo, mesmo
que nada signifique nada. Mas naquele momento era como areia
movediça. Eu ia morrer e depois não ia haver mais nada! A VIDA era
uma casualidade estúpida que ia acabar. Pensava em como seria se eu
morresse brevemente. Pensava na minha mãe, no meu pai, a saber da
notícia, a saber que eu, uma pessoa tão activa e apaixonada pela
VIDA tinha desaparecido para sempre e a última vez que eles me
tinham visto tinha sido há quase um ano. Pensava na Graciete a
rebentar com tal notícia, pensava em conhecidos. Pensava em pessoas
que não vejo com frequência mas que se nutrirem carinho por mim,
como a Nazaré. Pensei em alguém a chegar à loja e dizer “Sabes
quem morreu?... O António Pedro...” Pensava nas pessoas a darem a
notícia às minhas pessoas próximas e às pessoas que de mim só
sabiam que era “aquele gajo que gostava de viajar”, pensava no
meu corpo morto dentro de um caixão e as pessoas vestidas de negro.
Pensava na minha mãe agarrada ao meu corpo aos gritos como fez
quando viu o meu avô morto pela primeira vez. Eu ia morrer, eu vou
morrer. Mas naquele momento tudo parecia tão real que me rebentava o
cérebro. Não achava que ia morrer já mas pensava nessa
possibilidade como se fosse provável. E se, pensando na
possibilidade de morrer já me focava em como isso seria vivido por
quem ficasse, quando conseguia afastar um bocado o tempo e pensar no
conceito em geral não me sentia muito melhor porque, fosse aos
trinta, fosse aos setenta, eu ia desaparecer para sempre, e essa
noção alastrava pelo meu corpo todo e queimava tudo, deixando a
minha alma com falta de ar. Pelo meio, falava comigo mesmo. “Eu
ainda estou aqui”, pensava, não me referindo a ainda estar vivo,
mas a ainda estar em mim, na minha mente. Não estava completamente
controlado pelo que tinha tomado. Mas era como se visse o meu eu
fechado numa caixa de vidro de onde o som não vinha, aos murros na
parede, tentando sair e tomar conta do meu outro eu,
mais negro, que me ocupava naquele momento. Depois pensei no Kurt
Cobain e pensei em pessoas que se suicidavam. Esse meu eu
mais negro nunca achou que tal era solução para nada, mas naquele
momento pensava em como teria sido para ele, para o Hemmingway. O que
levaria alguém à potência do suicídio? Parece que percebi, pela
primeira vez, o que realmente é o suicídio. Somos tão inundados
com tudo ao mesmo tempo que às vezes parece que percebemos um pouco
de quase tudo mas nenhuma totalidade de nada, e eu naquele momento
estava a caminho de perceber o suicídio. Percebi muito mais ao longo
das horas seguintes quando a minha mente viajou da percepção da
minha morte para a percepção da morte dos meus entes queridos.
Entre os quais, especialmente, a Graciete. Não queria mas só
pensava em como seria se a Graciete morresse e tal visão, imaginar o
seu corpo sem VIDA deixava-me, naquele momento, completamente
derreado. O medo da morte, seja ela minha ou de alguém meu,
espalhava-se pela minha alma e chegava já ao ponto de sentir uma
forte bola de adrenalina rebentar no meu peito, como se estivesse à
beira de um precipício e tivesse de saltar. Acho que nunca me senti
tão mal. De vez em quando conseguia pensar noutras coisas e
esforçava-me, dava tudo o que tinha, para ficar com a mente aí.
Tentava ver coisas, tentava partilhar o que via, mas rapidamente
voltava ao mesmo. Pensava num amigo do meu irmão que morrera, no
filho dos vizinhos dos meus tios que morrera aos dezoito e pensava
naqueles pais. Também aí, pela primeira vez, me apercebi, mais ou
menos, do que será perder um filho, ou pelo menos perder um ente
querido. E depois voltava à Graciete. E naquele momento achava que,
se tal acontecesse, eu não seria capaz de viver mais. Não é o que
sinto agora. Se tal acontecesse, por mais que me destruísse, não me
mataria. Mas naquele momento eu sentia que não conseguiria mais
nada, que tudo acabaria, tal era o desespero e o medo que sentia.
Tudo o que eu via, tudo aquilo em que eu pensava tinha diante de si
um grande filtro que retirava a alegria a tudo o que eu conhecia.
Tudo porque no final, passe-se o que se passe, havia a morte. Pensava
no que me espera com a Graciete, toda uma VIDA, e pensava que
rapidamente seria só memórias e um de nós morreria. E depois o
outro.
Queria
sair mas não conseguia. Ia escorregando cada vez mais pelas areias
movediças e tudo o que me ocorria era negro e terrível. E a bola de
adrenalina que me ardia era tão forte que tinha medo de ficar assim
para sempre. Pensava em pessoas que tinham tido más viagens (trips)
e que posteriormente tinham mudado um pouco com isso, e tinha mais um
medo, desta feita o medo de morrer até antes de expirar.
Algures
pelo meio, num momento de sanidade mais normal, tive uma ideia que me
ficou vincada. Ia saltitando entre pensamentos de morte de outras
pessoas ou da minha mesma, e numa altura em que pensava sobre o facto
de um dia deixar de existir, tentei comparar isso com a perda de
outra pessoa. “Na maior parte das vezes, quando alguém morre, as
outras pessoas fazem o luto, e depois, de certa forma, habituam-se”,
pensava, “Se calhar o que eu tenho de fazer, depois de me aperceber
que vou realmente morrer, é fazer o luto de mim mesmo
antecipadamente, sendo que é a única maneira de o fazer. E depois
habituo-me”. E não sei se foi o que fiz naquela noite, ou se é
algo que tenho vindo a fazer, ou se é algo que farei por mais algum
tempo. A verdade é que há muito tempo que isso me ocupa. Não de
uma forma tão exasperante como a desta noite, nunca dessa forma, mas
por vezes dou por mim de ombros um pouco caídos quando consciente da
minha não-existência que espreita ao virar da esquina. Como tenho
ferramentas mentais que me permitem lidar com isto saudavelmente, não
é algo terrível. No fundo, posso até dizer, com algum grau de
certeza, que isso é uma das coisas que me permite viver mais da
VIDA.
As
horas iam passando e eu tentava aguentar até à meia-noite. O Sylvan
tinha-me dito que aquilo durava até às sete da manhã, mas
certamente ele estava a exagerar, nunca poderia ser tão longo. Pelas
dez o Ivon, que tinha mudado de roupa para um longo robe branco com
rebordos verdes tinha-se já apercebido que ninguém viria e largou,
de si para si “Tudo isto para ninguém?...” Eu fiquei contente
com a sua desilusão. A última coisa que eu precisava era de mais
sete ou oito ménes a olharem para mim, de cerveja na mão, a
perguntar o que é que eu via. Mas, a sorte de ter uma família tão
grande é que não é preciso nenhum convidado para se ter uma festa
já bem cheia.
Começou
a chover e tivémos de nos mudar para a casa em construção onde
tinha encontrado o Ivon pela primeira vez. O pessoal levou tudo –
os sofás, todos os cestos com o Buti,
algumas folhas de palmeira, a aparelhagem e os djambés. Lá,
sentámo-nos com uma disposição semelhante, o Ivon num canto, eu a
seguir a ele, os restantes homens, e as mulheres sentadas em sofás,
em silêncio, à frente. Admirava como toda, toda a família estava
ali, desde a irmã mais velha doente à mais recente criança, a
filha do Ivon com alguns meses. Baldar-se não era opção. Agora
cantava-se com força. Os rapazes ao meu lado tinham um tronco de
bambu no chão e cada um tinha duas baquetas. Foi aqui que comecei a
ter outro tipo de pensamentos com força, desta feita bonitos e que
mudaram a minha percepção do Homem. Estava a olhar para eles a
cantar. A lua já não emprestava luz nenhuma e o que se via era com
o auxílio de um tronco que ardia no meio e algumas velas. Olhava
para eles e pensava no investimento de cada um e do Ivon em
particular em manter aquelas tradições. Olhava para as mulheres,
agora em pé, a acompanhar a música com um “oéoéooo” e de
repente tive outra visão, mas esta mais dentro de mim e sem vir com
a Boire Sacrée. De repente consegui ver o Homem primitivo, consegui
ver aquelas tradições a surgirem, consegui ver a importância
delas, sendo que gerava um sentimento de pertença fundamental à
condição humana e eram também um bom veículo para aprendizagens,
fossem elas de organização, de respeito ao mais velho ou da VIDA em
geral, como os conselhos que o Ivon ia dando ao longo da noite, todos
eles sensatos. Conseguia ver tudo. Olhava para trás no tempo e
conseguia ver os primeiros homens a surgir, algures em África, e a
começarem a aprender. Aprender! Aprender! Vi os primeiros homens a
caírem de desfiladeiros e os outros a aprenderem que andar nas
beiras dos mesmos era perigoso, vi os primeiros homens a
experimentar, por acidente, elixires novos que lhes provocavam visões
e, na ausência de ciência, assumirem algo de religioso, vi a
religião a surgir. Naquele momento não tinha dúvidas de que a
religião assim tinha surgido. Vi a religião a surgir com questões
de “Que andamos aqui a fazer?” e a cimentar-se com força com as
primeiras pessoas que começaram a ter visões. Vi os primeiros
homens que viram o fogo pela primeira vez. Imaginei-os sentados num
canto qualquer e ver um raio que deixou um árvore a arder. Imaginei
as suas conversas. Vi alguém a acordar numa gruta e ver um feixe de
luz projectar imagens na parede pela primeira vez. Via tudo isto,
percebia tudo isto! Via o Homem a migrar, aos poucos. A entrar pelo
Médio Oriente, a espalhar-se pela Europa, Ásia, a adaptar-se ao seu
meio ambiente, a mudar fisicamente. Sempre, pouco a pouco, sempre a
andar, sempre a mudar, sempre a aprender!
Nós
sabemos muitas coisas em teoria mas, mais uma vez, somos tão
inundados com tudo que, muitas vezes, não as sentimos
verdadeiramente. Naquele momento eu percebi, e senti com força, que
todo o Homem que já existira, existira no pico do seu tempo! Até
então eu pensava no passado e sentia-o sempre como um caminho, algo
que tinha tido que acontecer para que o presente agora pudesse
existir. Mas como se não tivesse realmente existido! Como se não
passassem de histórias que vamos ouvindo. Pensei que, há cento e
vinte e cinco anos atrás, ninguém que hoje está no mundo existia!
E isso foi avassalador! Surgiu em mim uma profunda admiração pela
humanidade. Para o melhor ou para o pior, a humanidade é
espetacular! Andamos aqui todos aos tropeções há quase duzentos
mil anos, sem ninguém saber bem porquê, mas vamos seguindo em
frente! Juntámo-nos em grupos, adquirimos, formamos culturas, vamos
avançando. Guerras, tempestades, calamidades, morremos aos milhões
de uma só vez em alguns momentos, mas seguimos em frente! Aparecem
gajos como Jesus ou Buda que mudam tudo para biliões de pessoas
durante mais de mil anos, ficam na história como mais ninguém. O
resto das pessoas incorpora os seus valores, os valores são
deturpados, atrocidades são cometidas, e o Homem segue em frente!
Todos os dias algo a acontecer, todos os dias a mudar, aos poucos!
Pensei em mim e de onde venho, e senti um orgulho e prazer enorme em
fazer parte dessa mudança. Pensei no tempo dos meus avós, em que o
homem era o chefe de família e em como isso agora está a mudar.
Pensei nas bruxas, nos homossexuais, pensei em todos os grupos de
pessoas que já sofreram injustiçadas e pensei em como, aos poucos,
em alguns lugares, isso vai mudando. Pensei em más mudanças, em
leis que voltam ao passado e, por mais que as deteste, não conseguia
não as achar interessantes! Percebi que fazia parte disto tudo e, ao
mesmo tempo, parte de nada, porque o meu papel em tudo será,
provavelmente, insignificante. Aqui resvalava novamente um pouco para
o desespero. Queria significar algo, mas o eu
que estava fechado na caixa conseguia gritar alto, tão alto que eu o
ouvia dizer que isso era o meu ego falar e que, no fundo, eu faço
parte dessa mudança porque eu sou, por exemplo, uma das pessoas que
luta pelo direito dos homossexuais, por uma mudança na cultura do
“eu é que sei e os outros que não fazem como eu estão errados”,
por uma mudança na tradicional família onde o homem é o chefe,
entre outros vários factores. Tudo isto ia aparecendo e
desaparecendo e evoluindo na minha mente, pontuado com observações
dos meus irmãos a dançar, esporádicas visões e vários pedidos
das mesmas por parte do meu pai espiritual, como o Ivon se intitulava
desde o episódio no bosque.
Às
tantas cheguei a outro plano mental, desta feita tão complexo que
hoje não consigo descrever com exactidão. Como que me apercebi da
individualidade de cada pessoa, ao mesmo tempo questionando até que
ponto nós temos mãos em nós. Acredito sempre que somos os agentes
do nosso destino e podemos escolher mudar. Só não sei se essa
escolha é uma escolha propriamente dita. Pensei no meu nascimento, e
em como não tive opção em relação aos meus pais, que me
ensinaram as primeiras coisas. Pensei no meu código genético, que
manipula como eu reajo e reagi com tais aprendizagens e em como eu
também não o tinha escolhido. Misturei depois estes dois conceitos
e tive o meu primeiro eu,
de algures à volta dos dois anos de idade. Esse eu
era fruto de casualidades que eu não escolhera, e o meu eu
de hoje é fruto do desenvolvimento desse eu
ao longo dos tempos. De repente via-nos a todos como pessoas que
“vieram assim”. Pensava na Graciete, no Petiz, no Remy e em como
cada um tinha “vindo assim”. Depois pensava em mim e nestas
pessoas todas e em como cada pessoa é uma pessoa no seu próprio
sentido de ser, tão imersa em si mesma como eu em mim. E comecei a
sentir-me extremamente só, porque sentia que ninguém conhecia
realmente ninguém, e desejava ardentemente poder, um dia, partilhar
a minha consciência com alguém durante algum bocado, como se essa
fosse a única maneira de conhecer alguém. Pensava em todas as
coisas que acontecem quando eu não estou a ver e apercebi-me, mais
uma vez, da minha insignificância.
As
horas iam passando e eu ia resistindo. Por volta das quatro da manhã
os homens levantaram-se todos e fomos para o templo. Lavámo-nos à
volta de um bidão de água e eu achei que aquilo tinha acabado.
“Consegui!”, pensei. Enganado, enganadinho. Entrámos no templo,
sentei-me no chão encostado à parede a tentar descansar e a sonhar
com a paz que viria com a sobriedade quando reparei que os rapazes
mudavam de traje. Vestiam peças com guizos e espalhavam também pó
talco por todo o corpo como fora feito comigo anteriormente. O Ivon
aproximou-se e voltou a fazer o mesmo comigo. Ainda não tinha
acabado. “Tudo bem, eu consigo!”, pensei. Meia hora depois
estavam todos prontos e decorados, uns com penas no cabelo, outro com
uma peruca, outro com um gorro que parecia para ir às abelhas, todos
com uma espécie de caneleiras vermelhas com guizos, outros também
com tais objectos nos tornozelos. Quando estavam prontos voltámos à
casa de onde viéramos.
A
fome fazia-se sentir mas não podia comer. O Ivon queria que eu
continuasse a ver coisas e a comida ia afastar a Boire Sacrée.
Chegou a uma altura em que toda a gente tinha de dançar. Apesar de
querer estar no meu canto a tentar controlar a minha mente, ao mesmo
tempo admirava como ele não me dava abébias e eu tinha de fazer
parte de tudo. Primeiro levantou-se o David e foi para o meio, onde
um aglomerado de vimes da grossura de um balde ardia com força.
Pegou numa tocha e, ao som dos batuques no tronco de bambu e do
djambé começava a dançar com força, como se tivesse pequenos
tremores de terra em cada poro da pele, agitando vigorasa mas
cuidadosamente a tocha, sempre à volta da fogueira. A meio,
deitou-se no chão, gatinhou até aos pés do pai e tocou com a
língua no dedo grande do mesmo, elevou-se a joelhos, o pai pegou-lhe
nas mãos e passou-as pela sua cinta e o rapaz deu meia volta e
voltou à dança. Assim se foi passando, um atrás do outro, com a
diferença de que dois deles, talvez imbuídos do espírito da
cerimónia desapareciam no final com a tocha, iam correr dar a volta
à propriedade e voltavam, como se se tivessem ido anunciar ao mundo.
Eu ia-me sentindo a ir e vir da minha moca. Lembro-me de pensar
talvez oito vezes “Okay, estou a ficar melhor”, apenas para
depois vir uma nova vaga de mal estar, seja físico ou de
pensamentos. Porque estes pensamentos ocuparam-me a noite toda, e não
consigo dizer com precisão que neste momento pensei na morte,
naquele pensei na individualidade, e por aí fora. Sei sim em que
pensei e admiro-me é com a precisão com que posso descrever o que
me passou pela cabeça. Tivesse sido uma bebedeira, talvez um terço
ficasse pelo caminho.
Quando
chegou a minha vez de dançar, deixei-me levar. Saltei, agitei,
rodei. Cansei-me mas entreguei-me ao ritmo. Ajoelhei-me, toquei
também com a língua na ponta do dedão do Ivon, levantei-me, dancei
mais e no fim, tal como os outros gritei “Bokáié!” para prazer
de toda a gente. O Ivon, num momento de silêncio, disse “Estão a
ver, os brancos também sabem dançar!” No final quase tombava mas
passado um pouco sentia-me melhor. Às vezes o Ivon falava da Boire
Sacrée e do que faltava fazer e eu sentia um medo infantil. Não ia
tomar mais, isso era garantido. Só que queria fazer as coisas como a
tradição mandava. Mas não ia tomar mais. Já me tinha entregue de
corpo e alma, quase literalmente, a tudo o que me rodeava nas últimas
horas e isso tinha-me custado, e não o voltaria a fazer de imediato
só para agradar ao meu anfitrião. Não voluntariamente, pelo
menos... Porque o Ivon já me tinha enganado. Quando estávamos no
quartinho contíguo ao templo tinha-me dado algo. Perguntei o que era
e ele disse que era “medicamento”. Confiando, tomei. Mais tarde
disse-me para comer uma banana. Eu disse que não queria mais Boire
Sacrée e ele disse que não tinha. Tinha. Meia hora depois disse-me
para comer uma folha enrolada em triângulo mas que não podia abrir.
-
Não, não como sem abrir – respondi.
-
Anda, come, à confiança.
-
Pois, mas eu não confio em ti. Porque há pouco mentiste-me. Por
isso agora se queres que eu coma essa folha tenho de a desdobrar –
e andámos assim cinco minutos, até que ele a desdobrou. Ele dizia
que não tinha nada, mas eu via uma bolita branca. Pegava na folha,
via-lhe as mãos, olhava para o chão, e não via nada. Já estava a
alucinar com o medo da Boire Sacrée!
Entre
as danças, como o Ivon insistia com as perguntas acerca do que via,
decidi ser mais aberto em relação a tudo e comecei a desbobinar.
Não esperava já ver um padrão. Se via qualquer coisa que pudesse
assemelhar-se a outra coisa qualquer seguia com isso e depois
construía uma estória. Às vezes, quando envolvia uma pessoa
qualquer, ele dizia-me para lhe perguntar o nome. Mas eu não
conhecia os nomes na língua deles, pelo que nunca acertava em
nenhum. E foi quando ele se debruçou sobre mim, a sua cara a um
palmo, e disse “Olha para mim, que é que vês?” que a rotina deu
uma volta. Como ele tinha a cara pintada de branco com um círculo
negro à volta do olho, eu vi um mimo. Depois de me levantar e
explicar o que era um mimo ele fez-me dar a volta a toda a gente e
dizer o que via neles. Houve risadas, como quando eu disse que via no
David, o único que nunca fora à escola, um professor, e houve
choro, quando eu disse ao Pierre, um miúdo de dez anos, que via um
pescador. Só me apercebi depois de dar toda a volta. O puto tinha-se
levantado para eu o ver bem e a verdade é que ele me lembrou um
pescador. Quando eu o disse toda a gente desatou a rir e a gritar
porque, ao que parecia, o puto adorava a pesca. Mas o puto sentiu
aquilo como uma sentença! E quando eu me apercebi disso senti-me um
bocado mal, questionando se estaria a levar aquilo longe demais. Mais
tarde falei com ele. “Tu podes ser pescador e podes ser tudo o que
tu quiseres ao mesmo tempo. Eu tenho amigos que são médicos e
professores, e são também pescadores! Tu é que sabes aquilo que
vais ser, não sou eu!”, disse-lhe, metendo-me no meio quando o
Ivon dizia algo semelhante. Como com outras visões, se eu dizia algo
que não tinha nada a ver o pessoal achava piada, mas se eu por acaso
acertava com algo o pessoal flipava. A visão mais nítida que tive
foi quando fui aliviar-me lá atrás.
-
Olha para ali, vês alguma coisa? - perguntou o Ivon, apontando para
a escuridão.
-
Não, não vejo nada...
-
Eu vejo... um grupo de pessoas... não vês?
-
Eu... eu vejo um túnel! - respondi. - Espera... está em andamento.
Vejo um carro, como se fosse um desenho animado, a sair do túnel!
Está agora na cidade e vai com força, vejo as casas a passar ao
lado! - e via tudo aquilo a duas cores, mas nitidamente!
-
Nesta altura há outro processo... - disse-me o Ivon quando voltámos
para dentro.
-
Mas eu não quero tomar mais Boire Sacrée... estou com alguma
dificuldade – respondi.
-
Eu sei. Lembras-te há pouco quando viste um barco a desembarcar na
América... duas culturas que se encontravam?
-
Sim.
-
Quando essas culturas se encontram, como nós e tu, tem de ser um
bocado de cada vez. Um bocadinho aqui, outro ali – respondeu. E,
sabendo que não me seria pedido que tomasse mais nada, melhorei um
bocado. Perdi aquele medo infantil e senti-me mais em casa. O sol ia
aparecendo e eu ia-me sentindo melhor. Dançámos mais, cantámos
mais, e voltámos ao templo. Aí foi a vez das mulheres dançarem.
Nós estávamos sentados e elas em pé do lado esquerdo. Vinham ao
meio, bambuleando a anca, e voltavam ao sítio. Ouvíamos música,
cantávamos. Já era de dia. Sete, oito, oito e meia. Íamos todos
aligeirando e a minha mente descansava. Sim, tinha conseguido. -
Ainda sentes a Boire Sacrée? - perguntou-me o Ivon.
-
Não... acho que não. Foi difícil, pá, muito difícil... E peço
desculpa se vocês estavam à espera que visse mais coisas... é que
eu estava a batalhar um bocado. Espero que não tenham ficado
tristes...
-
Não, nada disso. Ficámos foi muito contentes por teres estado aqui
connosco, por teres visto isto, por teres presenciado isto –
respondeu, para toda a gente ouvir, que concordava, dizendo que sim
com a cabeça. E eu, como me sentia em relação a tudo aquilo? Ainda
tinha de assentar definitivamente para descobrir.
Apareceram
duas pessoas quando passávamos pela cerimónia´de encerramento.
Mais umas danças, desta feita tranquilas, mais umas rezas. O Ivon
estava sentado e o Sylvan conduzia-nos. Fiquei com a impressão da
última parte ser assim para servir de ponte para o mais novo
aprendiz, que futuramente guiará os acontecimentos. “Acabou”,
disse o Ivon. Acabou.
Já
não tinha de estar acompanhado. Peguei numa cadeira e saí cá fora.
Como me sentia com tudo aquilo? Sentia-me bem, e sentia-me contente
por ter passado por tudo o que passara. Tinha ido ao Inferno e
regressado sem mazelas. Foi o próprio Ivon que me ofereceu a
metáfora da areia movediça, momentos antes. “Eu sei que é
difícil da primeira vez... sentimo-nos como se estivéssemos em
areia movediça, sempre afundando, afundando. Mas no fim sentimos o
pé outra vez, e já não afundamos mais”. A morte já não se
colava a mim mas ainda pensava nela, desta feita voluntariamente
para poder comparar o estado em que estava com o estado em que
estivera. Sim, estava de volta à paz de saber que tudo o que tenho a
fazer é viver. Acho que o que passei nessa noite foi uma parte
importante desse luto de mim mesmo que se tem de fazer. Quem não
pensa nestas coisas não precisa do luto. Quem pensa nestas coisas
precisa do luto da sua própria morte para poder viver com mais
força, talvez. Não digo que toda a gente deva experimentar a Boire
Sacrée para isso, mas foi o que se passou comigo. Na generalidade
não aconselho nem desaconselho a Boire Sacrée porque é algo
potente demais para eu ter esse tipo de responsabilidade na VIDA de
outra pessoa. Mas, mais em particular, desaconselho a quem não se
sinta tão forte mentalmente ou talvez a quem tenha passado pelas
coisas que eu receava passar, como a morte de alguém querido. Talvez
ajudasse, talvez fosse destruidor.
Aprendi
muito com esta experiência, e mudei um bocadinho. Não sou leviano
com afirmações destas, mas é verdade. A minha percepção da
Graciete mudou. Senti, e percebi que, mais do que o amor da minha
VIDA, ela é o rochedo da minha VIDA, e o amor que sinto por ela é
parte daquilo que faz de mim quem sou. Não dependo dela para estar
bem. Se nunca a tivesse conhecido não creio que fosse ser um infeliz
ou um fraquito. Mas o que é certo é que a conheci e só posso falar
com certeza do que daí adveio. E essa certeza é que a sinto como a
grande pessoa fulcral da minha VIDA. Mais uma vez, isto pode parecer
óbvio, afinal de contas namorámos há quinze anos... Mas, nesta
noite, eu senti tudo de uma forma que não tinha sentido antes.
Aprendi
acerca do Homem. Ninguém me disse ou explicou nada, mas eu aprendi a
beleza de todo o nosso processo conjunto. E isso liga-se a tudo o que
passei com a minha própria morte. Se, por um lado, a consciência da
morte nos pode fazer viver a VIDA com mais intensidade, por outro a
minha descoberta de amor pela humanidade fez-me ver com melhores
olhos a minha própria VIDA e a recear menos a morte. Pois
apercebi-me que já é um privilégio enorme poder fazer parte disto
tudo, especialmente se fizermos, como eu creio fazer, por mais
insignificante que seja, parte de uma mudança qualquer que vejamos
como positiva.
Redescobri
o amor pela aprendizagem e isto fez-me mudar em duas vertentes.
Tendo
visto a humanidade a aprender aos poucos, vi-a depois como uma pessoa
e isto fez-me amar mais cada pessoa individual do início ao fim, da
nascença à morte. Dantes não tinha grande afecto por bebés.
Gostava de crianças mas gostava mais quando podia falar com elas e
trocar ideias, por simples que fossem. Não achava os bebés
interessantes, simplesmente. Mas, e isto foi já no dia seguinte,
quando olhava para a bebé do Sylvan com um pauzito na mão a tentar
bater-me com ele na palma da mão, achei aquilo incrível. Via a
miúda a fazer toda a força do mundo para trazer o pau de trás das
costas, ao mesmo tempo tentando coordenar para me acertar, e achei
aquilo das coisas mais belas que já tinha visto. E isto porque
passei a ver um bebé como uma pessoa em potência, em vez de um
corpo sem grande objectivo nem ideia. Comecei a ver um bebé como
alguém que ainda não sabe nada, simplesmente, cabendo-me a mim, e a
todos nós, ensiná-lo, como connosco fizeram.
E
passei a ver-me a mim mesmo, e a todos nós, como esse bebé, passado
muito tempo, e senti uma sede enorme de aprendizagem. Não tenho de
parar de aprender, nunca! É certo que a minha VIDA se guia um pouco
pelas viagens e isso, em si, é uma grande aprendizagem. Mas agora
sinto uma vontade enorme de aprender a tocar guitarra, a cozinhar em
condições, a fazer móveis, a melhorar o meu francês, sei lá,
aprender tudo o que possa! Aprender a fazer coisas! E isso deixa-me
feliz. Sinto-me a caminho de qualquer coisa, por mais incerta que
seja e isso é um sentimento incrível!
Finalmente,
aprendi acerca da individualidade de cada um. Vivemos a nossa VIDA
tão imersos em nós mesmos que às vezes nos esquecemos que ainda há
nascer do sol quando nós estamos a dormir. Vivemos a VIDA demasiado
como se fôssemos os actores principais. É natural, tudo bem, afinal
de contas vemos as coisas com estes olhos apenas. Mas a forma como eu
senti a individualidade de cada um trouxe-me uma certa humildade. Não
penso hoje, como senti na altura, que estamos todos sozinhos. No
fundo, sinto até o contrário. Foi a aprendizagem mais estranha que
retirei nessa noite, sendo que é um pouco adversa daquilo que me
atravessou que
atravessou na altura em nível de sentimentos. Mas está aqui de
qualquer maneira, adversidades à parte...
Não
estamos sozinhos.
Isto é genial. Mas que GRANDE experiência. Não pares Pedro, és o maior.
ResponderEliminarDá-lhe! Quanto tempo até SA? Enjoy da life! :)
ResponderEliminarForça Pedro. És grande. Continua!
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