sexta-feira, 31 de outubro de 2014

De Regresso ao Benim



E aqui estou, de volta ao Benim. Chegado, e andando pelas ruas de terra, vendo o mar de Cotonou lá ao fundo e sentindo o Vento nos cabelos, senti que gostava mais de estar aqui. Gostei da Nigéria, mais do que tinha antecipado, mas há qualquer coisa que me escapa que me faz preferir os países anteriores. Não sei se material ou imaterial... talvez pelo lado material o facto das urbanizações aqui terem mais do que a Terra já foi, sejam mais árvores ou terra, os recantos onde uma pessoa se pode sentar e pedir um café que vem afogado em leite condensado ou, aqui no caso de Cotonou, a brisa que senti e que, de repente, me mostrou o abafado que a Nigéria consegue ser. Engraçado que sinto que, sempre que comparo dois países ou dois povos, sinto como se tivesse a comparar duas pessoas, e como se estivesse a trair a confiança daquela que vem menos favorecida, habitando um pequeno e inocente sentimento de culpa no âmago.
                 
Nunca estive tanto tempo sem escrever sobre esta viagem quanto nos meus últimos dias na Nigéria, e nunca os meus últimos duas num país foram tantos quanto aqueles aí. Sinto as duas ou três semanas finais como uma espécie de sonho. Li muito e escrevi cinquenta páginas do meu romance, e vi filmes, e conheci o Javi e o Babson, e descontraí. Não foram maus tempos, mas sinto-os como se vários dias tivessem sido cortados aos bocados, metidos numa batedeira e despejados num copo, misturandos todos num único grande dia, não conseguindo eu saber onde cada um acaba e começa. Não sei se é um bocado isso que a VIDA pode ser... uma sucessão de dias agradáveis mas que, por nenhum ser muito diferente dos outros, acabam por ser todos o mesmo, sucedendo-se apressada ou lentamente, dependendo da maneira como nos sentimos quando o analisamos, com uma certa onda agradável mas sem euforia em lado nenhum. Se certo é que, agradável é melhor que desagradável, não é bem o que quero para a minha VIDA. Nestes dias não partilho da opinião de que é preciso conhecer o mau para saber o que é o bom e cenas do género e, na maior parte das vezes, acho que quem tal diz é só porque soa bem e inteligente, como dizer que há sempre um equilíbrio entre as coisas, e afirmações sem jeito do género. Assim, não quero que a minha VIDA se paute por mais altos e baixos, picos ou crateras, do que a mera constância de semi-picos. Quero que se paute por picos que se possam ver ao longe, entre as nuvens, e que se paute pela variedade deles mesmos. Picos cobertos com resplandecente neve, picos cobertos de verdura virgem, picos cobertos com palhotas e cabras a pastar. Porque acho que a diferença ajuda a trazer à (minha) VIDA mais memórias e sentimentos do que dormência da constância. É uma das razões pelas quais amo viajar – a diferença entre os dias que, ainda anos mais tarde, conseguimos recordar com um detalhe estonteante. E assim, como a VIDA é feita de memórias, se viajando nos lembramos de mais da nossa VIDA, viajando vivemos mais da nossa VIDA.
                 
O que não era o que eu fazia no meu agradável pouso em Calabar, na Nigéria.

Quando saí em direcção a Lagos, depois de negociar o preço para o transporte da Mónica e das minhas bagagens, disseram-me que chegaria às nove da noite. A meio da viagem disseram onze. Perto do final que não passaria das onze e meia. Chegámos às quatro da manhã, tendo perdido duas ou três horas num engarrafamento e uma hora porque o condutor quis fazer uns trocos e ir entregar um pneu ali à frente, provocando quase uma revolução no autocarro, com o pessoal aos berros, aos murros à porta e um méne a tentar, com um murro, destruir a televisão que nos tinha mostrado as terríveis produções de Nollywodd do costume. A Ema, que me tinha albergado quando lá passara pela primeira vez esperou a dormir no banco do carro desde as onze da noite.
                 
Como a fronteira com os Camarões ainda estava fechada e não havia voos não sabia se o consulado estava a dar vistos, pelo que fui lá ver na Segunda-Feira. Precisava de cento e vinte dólares e do meu cartão de vacinas. “Porreiro”, pensei, agradado com a ideia de voar do Benim por cento e cinquenta euros e, assim, acabam por só avançar de avião uma centena de quilómetros. Regressei na Terça-Feira, tudo direitinho, entreguei as coisas ao homem da recepção e ele subiu as escadas. Fiquei debruçado sobre o balcão a conversar com o outro camaronês que lá estava e quando o outro chegou disse que me tinham negado o visto.
                 
- Porquê?
- Porque você esteve na Libéria e noutros países com ébola. E o cônsul diz que se calhar não o deixam entrar no país, por isso não quer que desperdice o seu dinheiro – respondeu.
- Mas eu estive lá há meio ano! Já tinha morrido cinco vezes! Diga-lhe isso, por favor.
- Pois, não interessa, não vai dar... – respondeu, secamente. E lá fui embora, meio derrotado. Tinha de encontrar uma alternativa. Já não queria ir para o Este de África, como tinha pensado anteriormente. Na verdade, isso seria uma viagem diferente. Ir à volta da Nigéria também não me parecia exequível, sendo que havia quem dissesse que no Níger não estavam a dar vistos para o Chad, que não conseguiria passar daí para o Sudão, e outros problemas, como a guerra no Darfur, que teria de atravessar. Tinha duas opções em mente: ir a Portugal dois meses por seiscentos e poucos euros, passar o Natal e regressar à Nigéria, seguindo assim a viagem sempre por terra, como tinha inicialmente planeado, e assumindo que a fronteira com os Camarões eventualmente abriria; ou ir para o Benim, deixar a bicicleta, ir de táxi até Lomé, no Togo, fazer o visto do Gabão, regressar ao Benim e daí voar para o Gabão. Depois, ou seguir daí para Sul, ou subir até aos Camarões de autocarro e descer de bicicleta, passando daí para o Congo. Não me lembro de alguma vez estar tão dividido perante duas opções como neste dia. Pensei tanto que, a dada altura, me ficou a doer a cabeça! Se fosse a Portugal talvez a fronteira abrisse e continuaria pelo me trajecto inicialmente delineado, e passaria o Natal em casa, algo importante para mim, mas mais para os meus. Mas se ficasse, a viagem continuava. Iá, não como queria, mas continuava.
                 
Foi quando me apercebi que, se fosse a casa, a viagem acabaria lá para Julho em vez de lá para Abril, que decidi que queria seguir. A partir daí era decidir entre voar do Benim para o Gabão, fazendo escala nos Camarões, ou voar directo do Togo. Do Benim era mais barato sessenta euros, mas talvez não me deixassem entrar no avião para os Camarões. Além de que fazer escala aumentava substancialmente a probabilidade de perder as malas ou a bicicleta.
                 
Deixei Lagos ainda sem saber que opção escolheria. Com um enorme ao redor do buraquito onde o raio assenta na roda, e por isso mesmo sem raio, e com a bicicleta a raspar no guarda-lamas pelo méne de Calabar não ter sabido ajudar os raios decentemente, deixei então a casa da Ema, que se tinha tornado, juntando as noites que já lá ficara anteriormente, a segunda couchsurfer que me albergara por mais tempo, depois do Babson, em Calabar. Dezanove contra quinze noites.
                 
Como parecia que estava na moda ter mais que uma opção e sentir-me dividido em relação ao que fazer, nesse dia seria o mesmo. Podia ir pela segunda fronteira quem conta a partir do mar, evitando assim a “fronteira do inferno”, como me tinha sido descrita, e ficar em casa do Damian em Porto-Novo, fazendo assim cento e vinte quilómetros, ou ir pela fronteira do inferno e, com esses mesmo cento e vinte quilómetros, ir directo a Cotonou, onde eu queria ir. Como passei o corte para a fronteira a Norte, a dúvida esclareceu-se sozinha.
                 
Ora, à pala da roda torta e de ter um raio partido, quando saí de Lagos saí com a roda a roçar no para-lamas. Para meu agrado, duas horas depois, deixou de roçar. Mas depois voltou a roçar. E depois deixou de roçar. E depois voltou a roçar outra vez, e desta vez com mais força. Tinha feito talvez uns sessenta quilómetros quando parei, espreitei e descobri que tinha partido quatro raios! “Okay”, pensei, “Está na hora de apanhar um táxi”. Alguém me disse que, para ir para a fronteira, tinha de apontar para o céu e assim, com esta sinalética lá arranjei quem me levasse. Pediram dez euros assim à maluca, e acabaram por me levar por dois e meio.
                 
Aquela fronteira não tinha nada a ver com a calmaria daquela por onde tinha entrado. O mercado misturava-se com as barracas da polícia. Centenas de motas, lojitas, malta a vender na rua, fileiras de mesas com pessoal sentado de maço de notas na mão a trocar nairas, francos e dólares. Mostrei o meu cartão de vacinas, pediram-me dinheiro, segui. Entrei numa cabine, dei o passaporte, o homem preencheu o que tinha a preencher, entregou-me e mandou-me levá-lo ali para um carimbo. A senhora, que quis vir ver a minha bicicleta aos risos, foi simpática o suficiente para me carimbar numa página lá usada, devolveu-me o documento e estava fora da Nigéria. O pior estava para vir.
                 
Já no Benim tinha de tirar um visto de quarenta e oito horas. Pediram-me dez mil francos e, depois de trocar vinte dólares com um méne que eles chamaram, e depois de esperar uma hora, lá me entregaram o passaporte. “Agora tens de ir ali carimbá-lo”, disseram-me. contornei o edifício, voltando à estrada, abeirei-me da cabine onde uma polícia gorda estava sentada com algumas notas de mil naira e um caderno à frente, e dei-lhe o passaporte.
                 
- Tens de pagar mil nairas – disse.
- Mas eu não tenho mais nairas – respondi. Tento nunca mentir, nem que seja em coisas tão simples como dizer que não tenho dinheiro a um pedinte, preferindo dizer que não lhe vou dar dinheiro. Mas, quando sei que do outro lado me estão a enganar, não me sinto mal em fazer o que posso para me livrar daquilo.
- Pagas em CFA – disse a mulher. Eu não disse nada, o que ela interpretou como uma aceitação. Brincou um bocado comigo com isto e aquilo, e também me fez o favor de meter o carimbo onde lhe pedi. Mas depois estendeu a mão como quem está à espera de pão.
- Desculpe, mas eu tenho dinheiro. Já paguei dez mil francos pelo visto, agora tenho de pagar porquê? – perguntei. Ela tripou. Começou aos berros a dizer que eu tinha dito que não tinha nairas mas que tinha francos, e eu tentava dizer que não, simplesmente não tinha dito nada. Tentava explicar que andava a viajar de bicicleta, sem gastar muito dinheiro, mas ela não queria saber, e arrastou o meu passaporte para o lado, dizendo que não mo dava. Num momento, estendi a mão pela janelita, e tirei-o, com a velocidade de quem queria só ver uma coisa – Desculpe, mas não lhe vou dar nada, já paguei ali pelo visto, não lhe vou pagar por um carimbo – disse, e comecei a caminhar em direcção à bicicleta. A mulher saiu da cabine e veio cá fora, aos berros a dizer para eu lhe dar o passaporte e a ameaçar anular-me o carimbo. Não sei se deveria ter seguido na mesma. a cena é que ela era, no fundo, a polícia. Tipo... supostamente, quando nós estamos numa alhada ou alguém nos está a tentar extorquir, podemos contar com a polícia para nos ajudar. Mas quando é a própria polícia a fazer isso é mais difícil. E aquele momento não era como outros em que podia simplesmente voltar para trás ou esperar um dia ou dois, se fosse preciso. Estava entre fronteiras. Já tinha saído da Nigéria e ainda não tinha entrado no Benim. E a vaca sabia disso. Baixei a cabeça, respirei fundo e passei-lhe o passaporte. Sentia-me nervoso e zangado com aquela merda toda, e apercebi-me que as mãos me tremiam um pouco. Apercebendo-me disso não o deixava transparecer, porque quando se apercebem que estamos assim é quando se podem aproveitar mais. A mulher voltou a entrar na cabine e eu disse-lhe que só tinha quinhentas e cinquenta nairas, dois euros e meio, o que era verdade, não as tinha visto quando anteriormente tinha trocado dinheiro. Passei-lhas, ela ficou só com a nota de quinhentos e deu-me o passaporte. Paguei assim o primeiro merdorno desta viagem. Um suborno é quando fazemos asneira e pagamos para nos livrar dela, ou quando precisamos de um favor e pagamos por ele. Agora quando alguém que tem uma espécie de autoridade qualquer a usa para nos extorquir... a isso chamo um merdorno.
                 
Virei-me e um méne de uma cabina de saúde pediu-me o cartão de vacinas. Era a terceira ou quarta vez que o pediam. Só que este disse que tinha de lhe pegar quinhentos francos, setenta e cinco cêntimos de euro, para ele “validar” o cartão.
                 
- Não, ó amigo, desculpe lá, mas não lhe vou pagar nada! – disse, sem aquela boa onda que costumo utilizar nestas circunstâncias para aligeirar o clima. O gajo que se fosse foder.
- Não, tens de pagar.
- Não, não pago! – disse, firmemente. – Já deixei ali quinhentas nairas quando não devia ter pago, e a si não lhe vou dar nada. Aliás, já estive no Benim, se bem pode ver – disse, mostrando-lhe o passaporte – e não paguei por validação nenhuma! – entretando apareceu um beninês e o méne, pegando no seu cartão de vacinas, mostrou-me que era por eu não ter aquela vacina, a da meningite, que tinha de pagar. De repente já não era pela validação. Eu por acaso tinha tomado aquela vacina, mas não estava no cartão, nem ia dizê-lo, porque não era essa a questão ali. Isto andou para a frente e para trás, comigo dizendo mais que uma vez que já lá tinha estado e que não tinha pago nada, e com o gajo a dizer que se não pagasse me ficava com o cartão. Eu estiquei o braço e, como com o passaporte, agarrei no cartão, como quem lhe vai mostrar uma coisa, e não como quem o quer roubar. Abri-o, disse-lhe que tinha tudo, e virei costas. Aproximei-me da bicicleta, meti-o na bolsa da frente, e o méne veio atrás de mim, aos berros a dizer que não me tinha dito que eu podia ir, enquanto outro homem, que me tinha dado direcções, me vinha pedir uma gorjeta. – Eu vou é por-me a andar – disse-lhe. Se tinha pensado que não ia voltar a montar a bicicleta sem cinco raios, naquele caso achei que era o melhor e, com o méne da saúde atrás de mim a dizer para voltar e que não me tinha dado permissão e mais não sei o quê, lá me fiz à estrada sem sequer ouvir o pneu empenado no meio daquele turbilhão todo. “Puta que os pariu!”, pensei. Virei à esquerda ao fundo, encontrei um carro que me levava até Cotonou por um preço porreiro, meti a Mónica na mala e sentei-me a um canto. Passei a próxima meia hora meio paranóico, a pensar que a polícia vinha atrás de mim. Iá, eram só quinhentos francos, mas um gajo fugir assim era sempre uma boa desculpa para se extorquir mais umas coroas. E sim, sim, setenta e cinco cêntimos não é dinheiro, é verdade. Mas eu prefiro pagar um jantar de dez euros a um amigo, ou dar trinta euros a alguém que deles precisa para comprar um livro, do que pagar setenta, ou cinquenta, ou dez cêntiimos que sejam a parvalhões que abusam de um sistema destes e da resignação de quem por eles passa. Assim, sentindo que tenho uma opção viável, vou sempre por essa. Que foi o que não senti com a outra vaca, que sempre podia usar a sua farda para me fazer qualquer coisa. Agora que escrevo penso se deveria mesmo ter fugido dessa também... mas paciência, está feito, está feito.
                 
Uma vez no Benim apercebi-me que aquela era a fronteira mais potente por onde tinha passado até então. Tal como nas outras, tinha toda uma agitação, centenas de motas, vendedores de tudo e mais alguma coisa, mas num grau elevado e, especialmente, um número anormal de pedintes, a maioria deles putos de cabelo liso, até alourado, e narizes e lábios estreitos, que bem podiam ser portugueses, ainda que com uma tez mais cigana, e que se penduravam nas janelas do táxi falando nas línguas que entendessem até fazer passar a sua mensagem. Tinha estranhado as pessoas abordarem-me em francês do lado nigeriano, e ainda mais estranhei as pessoas abordarem-me em inglês do lado beninês, como se o mundo tivesse sido trocado de repente.
               
E assim cheguei a Cotonou, ficando em casa do Arthur, a mesma casa onde passei algumas noites... há dois meses atrás.

16h14, s, 31-10-14
Cotonou, Benim

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