Que dias! Que dias...
Saí
de casa do Wilson e a primeira coisa que vi foi o meu pneu de trás que parecia,
mesmo, querer o suicídio. Tinha-o reparado na noite anterior e, confirmando a
minha suspeita de que eu não sou grande coisa com isto de arranjar pneus, nesta
manhã era como se não tivesse feito nada. Troquei por outra câmara de ar num
instante, sem saber se essa câmara estaria boa ou não e bazei. Queria bazar!
Ontem tinha ido recuperar os dez ou quinze quilómetros até Ngwo e, como tantas
vezes, alguns imprevistos fizeram com que tardasse mais do que planeava e já
não dava para deixar Enugu nesse dia. Por isso hoje... queria era ir. Sou quaese
sempre adepto da racionalidade mas, muitas vezes, sou também adepto do “vamos
indo e depois vê-se!” Razão pela qual, passados cinco quilómetros a nova câmara
de ar dava de si. Podia parar para e arranjá-la em condições, mas voltei a
encher o pneu e pus-me a andar. Pedalando, a corrente ia saltando e confirmei a
minha suspeita de que, confortavelmente, neste momento, só tenho quatro mudanças
onde posso andar... a terceira, quarta, quinta e sexta. Abaixo ou acima de isso
está sempre a saltar e a avisar-me de que preciso de uma corrente nova. E onde
é que arranjo uma corrente que eu tenha a certeza que não vai ser igual ou pior
que a que tenho? Não sei ao certo...
Lá
segui e passei o corte que deveria ter seguido para Agbani. Felizmente foi um
erro que só me custou, para cada lado, vinte minutos. Passei por uma
gasolineira onde podia encher o pneu, um achado, e enchi ambos ao máximo. Para
surpresa minha, assim se mantiveram! Cheguei a Agbani e senti que curtia muito
aquela zona. Era mais rural, e muito melhor do que pedalar pelas autoestradas,
vendo apenas gasolineiras e a ocasional vila de pouso para camionistas que
acabavam por explorar um bocado os prazeres da carne. Tinha mais com que
entreter a vista e até a natureza era mais porreira, vendo alguns campos
verdejantes em vez do matagal adensado de árvores tropicais.
De
Agbani cheguei a Amagunze e fui mandado parar pela segunda vez neste dia. Na
primeira, algures nos quilómetros que percorri erradamente, o polícia queria
revistar tudo o que tinha mas passou alguém de carro a gritar o meu nome e a
dizer que me tinha ouvido na rádio e isso ajudou a melhorar o clima um bocado.
Seria de supor que se tivesse sido a própria polícia a ouvir-me na rádio
assumisse que não era terrorista nenhum e me deixasse passar. Pois o polícia de
Amagunze tinha-me ouvido mas, talvez exactamente por isso, não me quis deixar
passar sem me levar à esquadra. Era um homem dos seus sessenta, simpático e boa
onda e, quando chegámos à esquadra, apresentou-me ao chefe. Mostrei-lhe a carta
que o Wilson tinha escrito para o governador de Lagos e o méne disse que aquele
não era o estado de Lagos. “Sim, mas é uma carta que explica o que estou a
fazer. E outros estados também foram avisados... tal como os Serviços
Secretos!”, tentava explicar. O homem não estava com cara de poucos amigos mas,
ainda assim, obrigou-me a mostrar tudo o que tinha, enquanto alguém tinha ido
tirar fotocópia ao meu passaporte e à carta. No final trocámos contactos,
tirámos umas fotografias e fui à minha VIDA.
Cheguei
à próxima vila e cometi o erro de parar para pedir direcções. Como de costume,
um monte de gente abeirou-se e, de repente, estava rodeado por vinte pessoas.
Uma delas era o méne que nos tinha tirado uma fotografia na esquadra momentos
antes. Estava parado, em pé, na Bicicleta, quando o Lawrence, o polícia que me
abordara primeiramente em Amagunze, me ligou.
-
Olá, tudo bem?
-
Sim, almocei há pouco, tudo bem!
-
Okay, boa viagem!
-
Obrigado! – e desligámos.
-
Eles estão a dizer que te querem revistar – disse o fotógrafo logo de seguida.
“Lá vamos nós...”, pensei.
-
Então... diz-lhe que estavas na esquadra e que viste a polícia a revistar-me.
-
Já disse, não adianta... – respondeu. Tirei o telemóvel e liguei ao Lawrence.
-
Olá irmão mais novo! – atendeu.
-
Olá! Olhe, estou aqui em Eke, e o pessoal quer revistar-me. Será que não podia
falar com eles a dizer que me podem liberar? – pedi.
-
O quê?! – e disse mais qualquer coisa e desligou, ficando eu com a impressão de
que estava a caminho. O líder da malta que me queria revistar não era mau de
todo. Disse para eu ir para a sombra e trouxe-me uma cadeira. Ainda assim
barafustei um bocado com ele.
-
Queres revistar-me porquê? Porque tenho um aspecto diferente!
-
Não... é porque eu sou o chefe de segurança da comunidade – disse o rapaz de
camisola de basquetebol e calções – e tu tens muitas coisas na tua bicicleta.
-
Sim, mas se fosse preto passava aqui descontraidamente! Mas como tenho um
aspecto diferente, de repente sou suspeito! Gostava de saber como é que te
sentias se o mesmo acontecesse contigo noutro país! – atirei. E, ao mesmo tempo
que falava, apercebi-me que não era o que estava a acontecer comigo,
exactamente, que me incomodava. Não me sentia ofendido porque sabia que não era
pessoal.
Algures
em 2010, quando trabalhava como psicoterapeuta em Birmingham, fui discriminado
duas vezes no mesmo dia. As únicas vezes que tal aconteceu em dois anos a tempo
inteiro e ùma semana por mês durante outros dois anos, foi no mesmo dia. De
manhã, a caminho do trabalho, avistei um méne ao fundo aos berros. Atirou um
caixote do lixo para o meio da estrada e reparei que tentava acertar nuns
rapazes de aspecto de serem do Médio Oriente ou da Índia. Subiu a rua enquanto
eu a descia, passou por mim e atirou “Tu também, seu caralho de imigrante, sai
do país!”, e cuspiu na minha direcção, falhando por pouco. Estava a caminho do
trabalho por isso não fiz caso e segui sempre em frente. Quando cheguei soube
que teríamos, nesse dia, uma rapariga à experiência. O tipo de sítio onde
trabalhava, uma Comunidade Terapêutica para pessoas com graves problemas, era
um sítio tão intenso e específico que requeria um período de teste para
podermos ver se a pessoa se enquadrava ali ou não. Pois esta rapariga, uma
inglesa de origem indiana, tinha, tal como as outras miúdas que lá tinha,
sérios problemas. A dada altura fugiu. Subi a rua e fui bater à porta onde me
disseram que tinha entrado. A gaja saiu aos berros a tripar comigo a dizer
cenas como “Tu, com o teu sotaque português! Tu nem sequer és inglês!” e cenas
do género. Quando voltámos à Comunidade e uma colega minha veio perguntar que
se passava a gaja desatou aos berros a dizer que eu nem sequer era inglês e que
não passava de alguém à procura de asilo asilo! Estava assustada e desviou e
tentou desviar o stresse no meu sentido, mas não é isso que itneressa. O que
interessa é que, em cada uma destas vezes, tal como nestes dias na Nigéria, o
que mais me lixa é o princípio deste tipo de discriminação. Acaba por não me
afectar imensamento a nível pessoal, mas há pessoas a quem afecta de uma forma
paralisante, de uma forma que as impede de viver a sua VIDA com o máximo de
potencial a que teriam direito. Mas a ignorância prevalece e elas são vistas
como parte de um grupo. Por vezes pertencem ao grupo ao qual são associadas, e
o que está errado é a má associação e generalização, por outras, como no meu
caso aqui, são associadas a um grupo ao qual nem pertencem!
Passaram
alguns minutos e, quando o fotógrafo se preparava para ir buscar a polícia,
eles apareceram. Estacionaram a carrinha mesmo à nossa frente com alguma
agressividade, e saíram da mesma com uma potência incrível. Aos berros a dizer
ao “chefe de segurança” para bazar e o gajo a tentar resistir, ao mesmo tempo
intimidado, a olhar para o chão e com dificuldade em olhar o Lawrence nos
olhos. À minha volta começaram todos aos berros e o meu amigo polícia volta à
carrinha, saindo com uma espécie de granada cinzenta, talvez de fumo, não sei
ao certo, não sei ao certo com que propósito. Eu peguei na Bicicleta e,
lentamente, dei a volta à multidão, aproximando-me do homem.
-
Olá. Desculpe lá este incómodo, não queria que nada disto acontecesse –
disse-lhe.
-
Vamos ter de ir para trás! – respondeu, para meu desagrado, enquanto me
entregava o seu cartão, que dizia ser apenas válido se assinado nas costas,
coisa que ele tinha feito.
-
Não, não se preocupe. Eu vou seguir em frente, qualquer coisa ligo-lhe –
respondi. Ele assentiu e bazei. Passado alguns minutos voltaram a aparecer.
-
Este rapaz escolta-te e diz-te por onde ir! – disse, apontando para um méne
numa mota.
Lá
segui atrás do rapaz entre alguns quelhos onde, realmente, precisaria de ajuda
em perceber o melhor rumo. Algumas pessoas passavam e diziam qualquer coisa com
cara de poucos amigos mas o méne dizia qualquer coisa e seguíamos. Quando
voltámos à estrada maior disse-lhe que já não precisava de vir comigo e segui
sozinho.
Andei
mais uma hora e mudei de Estado, deixando o estado de Enugu e entrando em
Ebonyi. Parei para pedir direcções e mais uma vez fui rodeado. Mas aqui
perguntaram-me apenas, com um sorriso, se era irmão do Bin Laden ao que eu
respondi, também com um sorriso, que não, era irmão de Jesus, achando que
trazendo a aparente semelhança à baila eles relaxassem. Mandaram-me por um caminho
impossível de navegar, mato adentro, cada vez pior, e voltei para trás. Quando
estava a chegar ao cruzamento onde tinha falado com eles encontrei um rapaz que
vinha buscar-me para me indicar um caminho melhor. Segui meia hora a curtir a
estrada aberta e um pouco de paz até que tive de parar quando um par de homens
que me ultrapassaram de mota sairam da mesma e bloquearam a estrada.
-
Ora diga... – disse, sem grande paciência.
-
Somos vigilantes – disseram, mostrando-me um cartão de aspecto oficial. – Tens
de te reportar à polícia.
-
Já fui revistado pela polícia, tenho este cartão aqui – respondi, mostrando o
cartão que o Lawrence me tinha dado.
-
Isso é noutro estado. Tens de vir connosco.
-
Bem... okay. É longe?
-
Não, é ali atrás.
-
Não há nenhuma esquadra que seja para a frente?
-
Não.
Andei
meia hora para trás! Meia hora! Frustrado vi-me chegar ao mesmo cruzamento onde
tinha pedido direcções momentos antes, enveredar por umas estradas de lama e
dar à esquadra de Ezzagu. Via um largo de uns trinta por trinta metros. Ao
fundo uma casa comprida com uns putos de tronco nu cá fora, à direita a
esquadra, um edifício amarelo completamente rebentado de cada lado, deixando
ver como já foram aquelas divisões, e uma sala no meio onde alguém escrevera
com giz escuro “Office”. Do lado esquerdo um carro inutilizado e mesmo à sua
frente uma casota que parecia ser uma cela. Pediram para começar a tirar as
minhas coisas da mala, o que fui fazendo. Estes queriam ver absolutamente tudo,
e foi a primeira vez que me pediram para abrir o saco-cama. Fiquei com a
sensação que nunca tinham visto um.
-
Abre! – disse um gajo, com agressividade.
-
Porque é que estás a falar assim comigo?! Estás a ver-me a desrespeitar-te? –
atirei.
-
Deixa ver o que tens aí dentro – voltou, mais sereno.
Entretando
chegou o guarda de serviço, com uma t-shirt em homenagem a um funeral qualquer
e uns calções escuros. Começou aos berros com o pessoal, pedindo àquela
multidão de vinte civis para dar espaço. Continuei a mostrar o que tinha
enquanto ia explicando os meus propósitos e, quando lhe mostrei o cartão do
Lawrence, ele disse para não lhe mostrar mais nada, quando não me faltava
mostrar mais nada.
-
Estás livre... – disse.
-
Pois... mas a cena é... que agora está a ficar tarde. Será que não poderiam ter
a amabilidade de me deixarem passar aqui a noite? – pedi. O inglês aqui não era
excelente, e o pessoal ia-se ajudando uns aos outros a traduzir, pelo menos até
eu me aperceber e começar a falar com sotaque nigeriano. A primeira resposta
foi negativa, mas expliquei que estava longe de qualquer hotel e, de qualquer
maneira, só precisava de um pedaço de chão que fosse seguro. O Steven, o guarda
de serviço, estava a fim de me ajudar, pelo que foquei os meus pedidos em si.
Mas, como sempre, havia um méne, que nem era polícia, nem era nada, que estava
sempre a mandar bitaites. O Steven tinha-me dado uma folha para preencher, onde
uma das questões era o meu destino. Como, nesta etapa, estava a caminho de
Calabar, foi o que escrevi. Mas o méne dos bitaites achava que era suspeito eu
não ter escrito África do Sul, como dissera antes. Cenas do género, enfim. Quando
lhes mostrei a carta do Wilson, que não mostrara antes para não virem com a
estória do “Mas isto é uma carta para
o governador, não é do governador”, o
Bitaites veio precisamente com essa.
-
Mas, se me permite – disse, simpática mas firmemente. – A lei não dita que eu
precise de uma carta do governador do estado a dizer que sabe que eu estou
aqui. Esta carta é, simplesmente, algo que explica em detalhe quem sou e o que
estou a fazer – e lá serviu para o gajo axantrar um bocado.
Tudo
acordado, o Steven apareceu com um balde de água e disse que me podia lavar nas
traseiras da esquadra, e que ficaria na casota que parecia uma cela. “Porreiro,
era só isso que queria, obrigado!”, respondi. Nas traseiras com o balde de
água, olhando à volta via a floresta. A floresta inteira como nós imaginamos
quando pensamos em África e, de repente, tudo estava bem. Já não estava
frustrado ou impaciente. Paciência. Tinha passado por algumas peripécias, mas
tinham acabado bem.
À
noite fomos ao fundo da rua para eu comer dois pacotes de Indomie,
despedimo-nos e voltei aos meus aposentos. Montara a tenda para servir de
mosquiteiro, meti o saco-cama a fazer de colchão e dormi até às seis e meia,
hora a que me vieram bater à porta. Arranjei as minhas coisas e pedi a um rapaz
para ir buscar as chaves da cela do lado onde tinha a Bicicleta e as malas.
Esperava o miúdo, sentado no muro da casota, quando o Steven apareceu a dizer
para eu voltar a montar a minha tenda. Parecia meio nervoso.
-
Hã? Porquê? Estou pronto para ir embora.
-
Pois, mas o padre da vila quer vir entrevistar-te, para ter a certeza que não
nos subornaste. Entra, entra... – respondeu, apontando para o interior.
-
Ah, okay... – respondi, entrando, enquanto o via pegar na minha tenda
embrulhada e metê-la a um canto dentro da cela. Confuso vi-o fechar a porta e
ouvi o barulho do aluquete. – Mas porque é que me está a trancar aqui? Eu não
vou a lado nenhum!
-
É para a nossa segurança – ouvi-o dizer. “Para a nossa segurança?” Que treta
era aquela? Sentei-me numa mesa de madeira do lado esquerdo de quem entrava, em
cima da qual também me podia pôr para espreitar pela janela gradeada,
convencido que não seriam mais que alguns minutos. Mas o tempo foi passando. Às
tantas ele veio falar-me – Não te enerves... – disse, sem razão, porque eu
estava tranquilo, apesar de confuso. – O padre passou a informação à polícia e
eles têm de vir cá. Eles são meus superiores em hierarquia, e querem vir ver-te
– respondeu. E, de repente, percebi porque me trancou. Para dar uma de “Estão a
ver como nós levamos isto a sério?” para os polícias que vinham. Voltei a tirar
o saco-cama, estendi-o no chão e dormi um bocado. Devo ter ficado à espera
quase três horas, altura em que, estava a espreitar pela janela gradeada,
quando vi uma data de gente a vir, três ou quatro dos mesmos polícias à séria,
com os seus uniformes azuis escuros.
Saí
cá fora, sorri e cumprimentei-os. O Steven disse para eu confirmar que tinha
tudo. Dei uma vista de olhos nas coisas mais importantes e disse que estava
tudo. “Não, vê mesmo tudo, porque assim nós também vemos”, disse um dos
polícias. Lá mostrei mais uma vez tudo o que tinha e, no final, disseram que
tinha de ir com eles à esquadra de Ishielu. Metemos as cenas na traseira da
carrinha branca, entrámos e seguimos caminho. Passámos por onde os vigilantes
me tinham abordado e seguimos sempre, comigo a aperceber-me que, pela primeira
vez em toda a viagem, haveria um par de dezenas de quilómetros que não faria de
bicicleta. Isto porque, se normalmente, em situações idênticas em que apanho um
transporte, volto para trás para depois completar os quilómetros que me
faltavam, desta feita achei que, com todo aquele celeuma, não era sensato.
Parecia ser uns trinta quilómetros, o que seria quase um dia inteiro para ir e
ver, e o pessoal ia estranhar um terrorista andar ali para trás e para a
frente.
Fomos
dar a uma estrada porreira, uma boa e larga faixa para cada lado e virámos à
esquerda, com quem ia para Enugu, de onde eu tinha saído no dia anterior. No
final ficámos a quarenta quilómetros desta cidade! O que significava que,
afinal, não saltaria quilómetros na viagem. Tinha saltado uma parte do
trajecto, mas tinha ido dar a uma que estava à mesma distância, ou talvez ainda
mais perto do meu ponto de origem.
Aqui
foi a estória do costume mas, desta vez, não me revistaram, sendo que a bófia
que me tinha trazido já o tinha feito. O chefe, um tal de Etta, leu a minha
carta e achou que aquilo era suficiente, e mandou-me à minha VIDA.
-
Preciso que me dê um papel qualquer a dizer que estive aqui e estou limpo! –
pedi.
-
Não, não temos autoridade para isso – respondeu. Quando o pessoal,
particularmente a polícia, não quer fazer uma cena a desculpa é não ter
autoridade para isso, já me tinha apercebido.
-
Dê-me pelo menos o seu número de telemóvel.
-
Hã? Quanto pagas? – perguntou, com uma risada palerma.
-
Não pago nada! Mas os vigilantes vão voltar a apanhar-me!
-
É porque estão a trabalhar bem! – respondeu, com mais ironia, enquanto descia
as escadas para se ir embora.
-
Pois mas você...- e calei-me. Ia dizer que eles até estavam a trabalhar bem mas
ele não, mas achei desnecessário estar a antagonizar o gajo. Não me preocupei
imensamente porque, quando vínhamos na carrinha, os dois guardas que vinham
atrás comigo tinham-me pedido o meu número e dado os seus, um com a esperança
que eu o trouxesse para Portugal.
Estava
na estrada aberta, finalmente! Pedalei como há tempos atrás, quando tudo corria
bem, numa estrada lisinha, sem grandes subidas ou descidas, vendo os
quilómetros desaparecer com facilidade até que, à entrada de Abakaliki, a
quarenta e poucos quilómetros da esquadra, senti a roda de trás torta. Parei e
tinha-me rebentado mais um raio, desta vez do lado da cassete, o que
significava que ia precisar de assistência. Continuar a pedalar era arriscar-me
a partir mais raios ou entortar a roda para sempre, pelo que caminhei, penando
debaixo de um sol escaldante, duas horas, até encontrar alguém que me pudesse
ajudar a retirar a cassete para poder meter o raio novo. O primeiro não sabia,
o segundo também não. O terceiro tinha uma lojita dentro de um mercado a céu
aberto e, quando entrei e lhe explicava o que queria, vi que alguém queria
falar comigo. Três ménes com cara de poucos amigos e a multidão do costume
atrás deles e também na loja do lado para terem uma vista mais privilegiada.
Tirei o telemóvel da bolsa, liguei para um dos polícias de Ishielu e
passei-lho, tentando continuar a explicar ao rapaz o que queria que fizesse.
-
Tens de ir connosco à polícia – disse um deles.
-
Eu não vou convosco a lado nenhum. Tu falaste com um polícia agora mesmo, ele
confirma que já fui revistado e estou livre.
-
Sim, mas na Nigéria há muita corrupção na polícia – respondeu.
-
E que é que queres que faça, que vá à polícia a cada meia hora só porque tenho
aspecto suspeito? – perguntei, enquanto me lembrei de lhe passar a carta. O
gajo leu a carta e disse que eu estava livre. Voltei à minha explicação para o
rapaz da loja, mas de nada serviu, ele não sabia como me ajudar.
Estava decidido,
ia ter de ficar em Abakaliki...
Sentia-me
testado à força toda. A Nigéria estava, e está, a ser a maior provação desta
viagem! E o mais curioso é que, se por um lado era isso que eu esperava, por
outro nunca pensei que o fosse ser por uma combinação de estradas com declives
constantes, raios partidos, pneus furados, reparadores de bicicletas limitados
ou, especialmente, estar sempre a ser visto como um terrorista! Não sinto que
este seja um país perigoso ou como gente maldosa e aproveitadora. Mas é um país onde o medo e a ignorância causam uma
mistura explosiva e quem sofre com ela são gajos como eu... e nem sequer tem
nada a ver com a barba porque o Javi, outro espanhol que também anda por aqui
de bicicleta, mas mais à frente, tem tido as mesmas peripécias. Mas ele disse
que teve “problemas sérios, sérios mesmo”, coisa que não posso dizer que tenha
tido. Posso ser eu que sou demasiado relaxado com a minha percepção das coisas,
ele que é demasiado exagerado ou então o facto de ele ter tido mesmo graves
situações...
A
minha ideia era assentar no hotel e ir arranjar o pneu para partir no dia
seguinte. Só que, quando me deram um quarto sem electricidade e pedi para
trocar, disseram para esperar. Fui esperando, esperando, e fez-se noite... Cá
fora, via pessoal a entrar e a sair dos outros quartos, homens e mulheres, e
cheguei a ver uma rapariga a sair de um quarto um minuto depois de um homem e
ir directa para outro quarto onde, minuto antes, outro homem tinha entrado. O
quarto que me estava destinado estava ocupado com outros amantes.
No
dia seguinte acordei às sete e pico para arranjar o pneu e pôr-me na alheta.
Fui perguntar ao pessoal onde me podia dirigir e apontaram uma oficina. O rapaz
disse que não tinha as ferramentas e apontou-me para um mecânico. Este pegou no
pneu, começou a desenroscar e de repente começaram a cair os rolamentos...
ficou tudo desmanchado menos a cassete, que permanecia orgulhosa e teimosa. Com
os rolamentos e o tubo cheios de areia
de repente estava numa situação pior do que quando lá tinha chegado. Mais um,
entre tantos, que tentava fazer sem saber
e acabava por estragar.
Apanhei uma keke para o centro e pedi para me deixar
próximo de uma oficina de bicicletas. O primeiro não sabia. Nem o segundo. Nem
o quinto. Todos me diziam que ia ter de estragar aquela cassete e meter uma
nova, quase dando a entender que eu estava a mentir, e que não tinha feito
aquilo antes. Ninguém! Ninguém sabia arranjar aquilo! Lá comprei um pacote de
gordura, uma chave para futuras tentativas e uma caixa de rolamentos e fui para
casa, passando mais de uma hora a limpar, sentado no chão, com a gasolina que
trazia no fogão, a areia que o outro velhote me tinha oferecido.
Liguei ao Javi
a perguntar se ele tinha a ferramenta e ele disse-me que não a tinha mas que
sabia arranjar a cena na mesma. Pensei então em ficar mais uma noite em
Abakaliki e, no dia seguinte, ir ter com ele a Calabar, cinco horas de
autocarro, para me ensinar a resolver o problema. Disse-me também que achava
que a fronteira com os Camarões ia abrir dia 20, porque era esse o dia em que a
Nigéria seria oficialmente considerada livre de ébola. O meu visto expiraria
dia 17.
Sentia-me
desanimado, de uma forma que não me tinha sentido nesta viagem, acho. Não me
sentia desmotivado, mas sentia-me um pouco desanimado com estas constantes
provações, com todas estas inconveniências que parecem aparecer ao mesmo
tempo... mas tudo bem. Meti o pneu para um lado e acabei de ler o Codex 632. Ia
ficar aqui mais um dia ou dois e ia... e não tinha pressa porque esperava que a
fronteira abrisse. Pelo que rapidamente voltei ao meu estado normal de ‘tá-se
bem. Lá, senti-me desanimado, mas é porque não estou ainda naquele ponto em que
posso rir abertamente de todas as inconveniências. Estou longe de ser um mestre
do drama, e efectivamente sorrio com a maior parte destas provações, mas é
verdade que também, por vezes, me sinto um pouco mais abaixo do que o meu
estado normal. Mas continuo aqui e presente em mim mesmo, não me deixando levar
por meias horas de amuos. Sempre a andar!
Palavras para quê?
ResponderEliminarFantástico, Pedro (O mestre da paciência)!
;) :)
Grande abraço e tudo de bom!
Boa mene. É isso. Parabéns
ResponderEliminaro mm anonimo de 1 d 2 do outro dia