Ouço a música que
me fez chorar em Mangata. Mas hoje não vou chorar. Não sei que me fez chorar.
Foi bom, mas não é o que vai por aqui hoje. Não que na altura sentisse o
contrário, mas hoje, neste momento, sinto-me tão calmo, tão sereno, tão cheio
da bondade que me ofereceram. Ah, que digo?, sim, às tantas vou chorar um
bocadito...
Estou em Hordro
Farm, na Libéria, e cheguei aqui há duas horas, mas sinto como se tivesse sido
há muito mais. Chovia e eu sentia os 125 quilómetros nas pernas, queria parar.
Perguntei lá ao fundo se tinham um sítio abrigado para a minha tenda, e o rapaz
disse que o melhor era eu vir aqui perguntar. Cheguei, perguntei pelo chefe da
aldeia. Um puto encaminhou-me para dois homens a namorar os quarenta anos que
jogavam um jogo de tabuleiro sentados no alpendre de uma casa.
- Será que é
possível arranjarem-me um espaço abrigado onde possa meter a minha tenda? –
pergunte, depois de os cumprimentar e me apresentar.
- Queres passar
aqui a noite?
- Sim.
- És bem-vindo! –
respondeu o senhor de bigode, que parecia ser mais velho. Sentei-me, e ele
disse-me que eu podia ficar num quarto, que a pessoa desse quarto dormia noutro
sítio. Agradeci. O outro, O Ben, perguntou se queria água para tomar banho.
Agradeci. Desapareceu, reapareceu com um par de chinelos. Voltou a ir, e vi-o
às voltas e percebi que procurava água quente.
- Não é preciso
água quente. Não quero incomodar, a sério, qualquer coisa dá.
- Não incomodas
nada – respondeu o mais velho. – O prazer é nosso.
Quando saí do banho
o mais novo lavava as minhas meias. Os putos iam aparecendo e especavam-se a
olhar para mim. Íamos conversando um bocadinho e o Ben ia entrando e saindo da
casa onde ficaria. Metemos a Bicicleta cá dentro, voltámos ao alpendre onde
estavam, contei, quase trinta pessoas, entre elas muita canalha, e passado uns
minutos apareceu um grande prato de arroz com duas sardinhas no topo. O Ben
continuava a entrar e sair da casa e, sei agora, estava a arranjar-me as
coisas. A fazer-me a cama de lavado. Quando me veio mostrar o quarto, uma
divisão vazia só com o colchão, tive de lhe dar um abraço. “Muito obrigado, a
sério, obrigado”.
Já muitos foram
muito bons comigo nesta viagem. Mas hoje senti-o mais plenamente, não sei ao
certo porquê. Os chinelos, a água quente, o quarto, lavar-me as meias, a
comida. E o sentimento. Aquela boa onda calmamente se deixa surfar por todos.
Deitei-me nesta
cama e sentia-me, e sinto-me, plenamente humano. Sinto-me grato, sinto-me bom.
Sinto-me como se estas pessoas, acima de tudo, me tivessem também oferecido
bondade com o seu exemplo. “Está aqui, agora faz o que quiseres”. Eu quero ser
assim. Eu quero ser como eles. Quero ser humano, quero ser bom como eles. Estes
exemplos ficam em mim, pá. E acho que é assim que deve ser. Usarmos os maus
exemplos para nos apercebermos de como é mau ser tratado de certa forma e
escolher nunca o fazer, usar os bons para nos deixarmos levar por esta onda de
bem-estar e querermos ser nós os bons, para a próxima, quando de nós
precisarem. Ah, pá, estou tão feliz! Não estou feliz de dar saltos, esta
felicidade é diferente. Sinto-a como menos passageira do que aqueles
sentimentos de pico espetaculares que às vezes temos, mais como um Verão de São
Martinho do um escaldante Agosto.
Penso no que nos
impede de sermos bons uns para os outros, e tenho pena de não encontrar nenhuma
razão válida. Uma das razões, em casos de albergarmos estranhos, darmos
boleias, ou outras coisas do género, é o medo de que nos roubem alguma coisa. E
vejo isto como profundamente triste. Porque as nossas coisas impedem-nos de
ajudar as outras pessoas. Tendemos a ser egoístas, muitas vezes. Metemo-nos à
frente de tudo e de todos, e deixamos que as pequenas, ínfimas probabilidades
de sairmos lesados de alguma situação façam com que sejamos menos pessoas.
Eu não quero ser
assim. Não me importa que achem que quero ser perfeito. O meu irmão diz isso,
às vezes. Não quero ser perfeito, só quero ser melhor, só quero melhorar. Eu
não quero ser assim. Eu quero ser alguém que é. Que é humano de dentro para
fora, que faz por sentir o que os outros sentem, que avalia a probabilidade de
um mau resultado, e que, sentindo a probabilidade mais alta do que é
confortável, não fecha a porta, literal ou metafórica, mas que encontra uma
solução diferente.
Eu quero ser.
Hordro Farm, Libéria
21h11, 6ª, 13-6-14
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