Lá fora há relâmpagos e trovões a saldo. Está na hora da chuva. E eu estou aqui dentro, no quarto do
Mohamed, a ouvir Lisa Ekdahl, com o computador ao colo, enquanto ele foi rezar.
Estou, definitivamente, numa nova etapa desta viagem. E estou a adorar! O Senegal,
ah Senegal, foi muito bom, mas agora percebo que foi fácil, muito fácil. África
a sério? Sim. Mas não tanto, talvez. Se bem que, que sei, eu que estou ainda na
Guiné-Conacri?
Ontem, aquele
grande dia que, tanto me faz sentir inveja como pena do meu eu dessa jornada,
parti de Saltinho com a ideia de mudar de país. Estava a quarenta ou cinquenta
quilómetros da fronteira, e depois tinha Boke a setenta e poucos quilómetros
daí. Daria para fazer tudo no mesmo dia? Daria. Se estivesse em Marrocos, na
Mauritânia, Senegal... Mas aqui a estória é outra, aprenderia.
De manhã sentia-me
um bocado em baixo, meio tristonho. Não estava a curtir muito a dificuldade de
encontrar água ou o que comer, e questionava-me se seria assim daí em diante.
Havia algo mais, mas não sei bem que era. Chuviscava, e pensava também no que
faria quando começasse a chover à grande. Havia ainda algo mais, mas não sei...
talvez aquela tristeza que aparece sem grande razão. Topei-a logo quando me
senti irritável logo de manhã com algo que um gajo fez, já nem me lembro, o que
quer dizer que não foi nada de especial.
O alcatrão deixou-me a uns vinte ou trinta
quilómetros antes da fronteira, quando dei o meu passaporte para o pessoal
carimbar do lado da Guiné-Bissau. E depois também me deixou a estrada, pouco
antes de chegar à Guiné.
- A fronteira é
para ali, não é? – perguntei a uns militares que bebiam chá, apontando para a
continuação da estrada de terra batida.
- Não, é para ali!
– responderam, apontando para umas casas de telhado cónico de palha. Meio
confuso, segui, e realmente vi um caminho, mas não podia ser aquilo.
- A fronteira é
por aqui?
- Sim, é –
responderam. Aquilo era um trilho pelo meio da floresta. Tão espetacular quanto
incómodo. Mas que se lixe, vamos! Lá fui pelo rego até que vi uma bandeira
parecida com a da França e assumi ser a fronteira. Olhei à volta e vi um
militar, depois outro, numa casita sem janelas. Aliás, era um muro a toda a
volta, um telhado de palha, uma cama e uma secretária. Entreguei o meu
passaporte ao homem que, confuso não sabia bem que fazer. Ia aparecendo um ou
outro para dar o seu bitaite e o gajo às tantas começou a escrever no
passaporte. Fiquei um bocado de pé atrás com aquilo, até que ele lá desencantou
um carimbo de dentro de uma gaveta da secretária. Coisas com carimbo são sempre
mais credíveis.
Enquanto tudo isto
se ia passando eu comia o meu almoço, uma baguete com uma lata de sardinhas e
uma garrafa de água de litro e meio que um guarda me tinha oferecido. A fome
apertava, e quando perguntei, do lado de Bissau, se havia restaurantes do outro
lado da fronteira, um guarda disse-me “Sim há muitos, há muitos!”. Pois ele se
calhar pensou que eu estava a perguntar do outro lado da fronteira tipo no país
inteiro. No país inteiro realmente há bastantes. Não há muitos, mas há
bastantes. Do outro lado da fronteira mesmo, é que não havia nenhum!
Despedi-me dos
simpáticos senhores e pedalei um bocadinho vila dentro, até que encontrei uma
senhora que vendia umas cenas tipo umas bolas de berlim sem açucar ou creme.
Não era lasanha, mas achei que provavelmente não ia encontrar muito mais até
fosse onde fosse que eu ia. Comprei dez, a pensar que ia ser isso o meu jantar.
Continuei mato adentro, embasbacado com o cenário e com aquela estrada. “Então
por isso é que a estrada era apresentada a tracejado no lonely planet”, pensei.
Ainda encontrei uma senhora que vendia bolachas, mas só tinha francos da Guiné
suficientes para um, que trouxe.
Estava com vários
sentimentos ambivalentes dentro de mim. A tristeza da manhã permanecia, talvez
exacerbada pela dificuldade em pedalar por aqueles lados. Ao mesmo tempo, essa
mesma surpresa com todo o meu ambiente, também me deixava tão admirado, que não
tinha como não traduzir isso por vezes num sorriso. Esse sorriso entrava dentro
de mim e lá me amenizava. A estrada alaranjada estava a custar bastante. Subia
e descia constantemente, e tinha de pedalar com cuidado entre calhaus e
pedritas. Ao mesmo tempo, eu estava no meio da floresta. Mesmo no meio da
floresta. Estava com alguma fome, tanto no estômago, como na mente, pensando
que não sabia como me ia safar. Mas ao mesmo tempo sabia que algo haveria de
acontecer.
Quando vi o rio delirei. Tinha feito uns
quinze quilómetros em p’rai hora e meia. Vi o rio ao longe mas nem me passou
pela cabeça não ter ponte, e perguntei a um
guarda por quem tinha passado se se podia nadar. Ele, não entendendo a
minha pergunta, até porque “nadar”, em francês, não deve ser “nadê”, disse que
eu chamava o rapaz da piroga e ele vinha-me buscar. Aproximei-me então e lá vi
o rapaz, lá ao fundo. Tinha à minha frente um belo cenário. A estrada descia
com alguma agressividade e acabava no rio que, calmamente, seguia para a
esquerda. Mesmo à minha frente uma piroga boiava, ao longe via um camião no meio
da água, que mais tarde percebi estar abandonado sob um transporte. Do outro do
rio casitas com telhado de palha.
Foi aqui que o dia
começou realmente a virar. Foi quando estava naquela piroga, que o rapaz de
t-shirt que já foi branca há muita terra atrás comandava, e olhava à minha
volta, piscava o olho à Mónica a ver se não ia mesmo cair ao rio, e tocava ao
de leve na água com as mãos, que comecei a apreciar a loucura daquilo tudo. Eu
estava ali! Eu estava ali! No meio da floresta, com aldeias de dez ou vinte
pessoas de vez em quando, de pessoas que vivem indo apanhar fruta! Eu estava
ali! Saí da piroga, os putos acenavam, um ou outro choravam por ver um branco.
Encostei a bicicleta, tirei as botas, as meias, os calções e a t-shirt e
entrei! Livre! Se aquele rio me tinha começado a carregar as baterias quando o
avistei, naquele momento, dentro dele, todo eu era outro. Apercebi-me, mais que
nunca, que vivia um momento único.
Com a minha nova
VIDA, deixei a aldeia. Não andei muito até que começou a chover. A primeira chuva africana. “Tenho de parar no próximo
sítio”, pensei. Virei à esquerda, e eis que dou com, sei-o hoje, Kissomayo, uma
pequena aldeia. Abriguei-me debaixo de um coberto de palha, e a canalha
rodeou-me logo, também o fazendo um senhor com cara de simpático, a quem
perguntei se podia meter a minha tenda ali. Iam chegando mais putos com mangas,
que me entregavam. O homem disse que ali não era bom, e levou-me para outro,
que não só não tinha uma fenda no meio, como também tinha um plástico por dentro
e tudo! Era o sitio perfeito! Apareceu outro a dizer que eu devia ficar à beira
da polícia que estava ali ao fundo, mas disse que não havia problema.
Como que a fazer
de parede tinha, só de um lado, uma mesa de lado. Com a bicicleta já abrigada,
pousei os cotovelos na beira da mesa e fiquei a apreciar. Outros cobertos de
palha estavam a ser feitos, ou estavam já destruídos. Árvores por todo o lado,
e uma estrada que vinha da direita e me tinha visto chegar. Outra, mais abaixo,
que vinha de Bissau, vim a saber. Putos. Quinze ou vinte putos a brincar.
Chuviscava e eu percebi, neste instante, que estava numa nova fase desta
viagem. E estava a adorar. Tinha começado o dia meio cocó, tinha tido uma ou
outra mudança, um ou outro baque, e eis que estava a adorar cada segundo não
obstante os pés molhados ou não ter perspectiva de jantar nem pequeno-almoço.
“É por isto que eu viajo”, pensei. Pelo improviso, pela malta a ser porreira
connosco. Até a chuva na testa me agradava, parecia difente. Sim, é água,
simplesmente mas, para mim, a chuva em África, por mais igual que seja à da
Europa, é diferente, sei-o agora.
Olhei para trás e,
vendo as seis ou sete mangas num canto dos meus aposentos, lembrei-me do Dizzy,
um vegano irritante que conheceram em Phuket, na Tailândia, três anos antes.
“Espero que ele tenha razão e um gajo possa mesmo viver só de fruta”, pensei,
achando que isso, as bolas de berlim e o pacote de bolachas seriam o meu
sustento.
Montei a tenda e
fui dar uma volta. Desci, segui uns metros pela estrada e um senhor chamou-me.
Era o Youssouf, o chefe da polícia. Levou-me para o seu escritório, uma casita
de barro também sem janelas, e sentámo-nos para ele apontar os meus dados.
Chegou entretanto o Cond, o adjunto, um homem magro, com aperto de mão forte, e
daqueles que entra a matar e depois acaba por ser um gajo simpático.
- Mas porque é que
tu viajas, qual é o teu propósito? Queres fazer o quê? Passas aqui, e vais à
tua VIDA!
- Sim, é
verdade... eu viajo para conhecer... novos países, novas culturas... também
para quebrar barreiras e estereótipos... por exemplo, muita gente pensa que
África é muito perigoso. Eu gosto de ir aos sítios, apreender a minha própria
realidade, e depois partilhá-la.
- África é
perigoso?! O Ocidente é que é perigoso! – e continuou um pedaço sobre o facto
de um gajo poder andar em África na boa e no Ocidente é sempre preciso papéis a
toda a hora e cenas do género – Tu, por exemplo, estás aqui a falar comigo, mas
no teu país estavas-te a marimbar para mim – aqui tive de travá-lo.
- Hei! Tu não me
conheces! Não me conheces de lado nenhum! Eu não sou assim. Tu tens uma ideia
das pessoas do Ocidente, que não é necessariamente verdade, e pensas que toda a
gente é assim. Mas, para mim, uma pessoa é uma pessoa, seja aqui, no Ocidente, ou
na China – e senti que aqui o homem aligeirou. Quase parecia que me estava a
testar.
- Há algum sítio
onde se possa jantar aqui? – perguntei ao Youssouf.
- Tens ali aquele
restaurante – respondeu, apontando para o outro lado da pequena rua.
- Que é que eles
têm?
- Ovos e café.
- Ah... pois eu
queria algo que eu pudesse comer e fazer “aaahhh” – disse, com a mão no
estômago. O homem achou piada a isto e disse que comeria com eles, o que para
mim foi como se me tivessem dado oito quilos de ouro. Estava safo!
O Cond levantou-se, disse para lhe ir
mostrar o meu hotel, e quando chegámos ele disse “Ah, estás bem”, como se eu
estivesse realmente no Sheraton, e disse para eu descansar que depois me vinha
chamar para comer. “Mas que pessoal é este?”, pensei.
Dormitei um pouco, enquanto uns putos do lado
de fora ia chamando “porto, porto!”, aparentemente como se diz “branco” em
Peul, e fugiam a sete pés quando eu simulava abrir a tenda, até que o Cond lá
me veio buscar. Fora de uma casinha, uma senhora cozinhava com três grandes
tachos à frenet, sentada num banquinho. À minha frente tinha uma travessa de
arroz com um molho vermelho que dava para três pessoas comerem bem, e dois
sacos de água potável. Comi tudo. Quando, no final, perguntei se tinha de pagar
alguma coisa, o Youssouf disse “Não, ‘tás em África, isto é hospitalidade!”,
enquanto, ao mesmo tempo, a cozinheira gritara um “Eh!”, como se eu tivesse
perguntado se os tachos eram feitos de esferovite.
De barriga cheia deitei-me nessa noite,
deliciado com o meu caro ser-humano.
Hoje acordei, desmontei a tenda, e fui ter
com o Youssouf para trocarmos contactos. Fui ao “restaurante” e tinha acabado
de dar a primeira trinca na minha sandes de omolete quando o chefe da polícia
passou e disse “Pedro, vamos comer!”.
Tinha setenta e tal quilómetros até Boké,
que seriam feitos à justa tendo em conta a estrada que abracei. Apesar do sobe
e desce constante, e das inúmeras poças de água, fez-se melhor do que no dia
anterior. Só que caí duas vezes! A primeira foi uma semi-queda. Um mero deslize
do pneu de trás e fui ao chão, sem me aleijar em lado nenhum. Já na segunda, ia
a mais de vinte à hora, falhou-me ali um milímetro na beira de uma poça de
água, a roda da frente deslizou e fui de zorro. Rasguei os calções e a minha
anca direita ganhou uma nova cor. Cor carne-viva. Mas tudo tranquilo. O mais
importante é que a bicicleta continuava impecável. Muito me admirava a Mónica,
portando-se como uma campeã apesar de pedalar sobre pedras bicudas e com tanta
trepidação que poderia fazer qualquer parafuso saltar.
Estava nas últimas quando cheguei ao
alcatrão de Boké. Já andava com um ouvido entupido e já bocejava, os sinais da
canseira, que às vezes leva à Matadeira. Fui a um hotel perguntar o preço e o
rapaz disse-me que era barato, vinte euros. “Não, obrigado”. Fui até ao centro,
e procurava um sítio com internet quando falei com o Mohammed, que dizia não
haver um. Perguntei-lhe onde podia comprar um cartão sim e ele levou-me a uma
loja. Perguntei onde havia hotéis e ele disse que era lá ao fundo. Perguntei se
podia meter a minha tenda em casa dele e ele disse que sim. Assim, sem mais nem
quê.
Viemos para casa dele, deixei as cenas no
seu pequeno quarto e fomos ao rio para eu tomar banho enquanto ele, por sua
iniciativa, lavava a minha roupa. Um muçulmano de trinta e cinco anos que reza
cinco vezes ao dia e que, ao que parece, realmente pratica a sua religião.
22h03-3ª-20-5-14
Boké,
Guiné-Conacri