Acordei terça-feira disposto a curtir o meu primeiro dia em Kiev. Cafézinho
tomado, saí com a Ksenia de manhã, porque ela só tinha uma chave e a porta
tinha de ser trancada. Custou, porque dormi no chão e estava um bocado partido
da noite anterior no comboio, mas foi melhor assim.
Saí do metro na praça principal, fui ao McDonald’s ver o meu mail e fui ver
a cidade. Na noite anterior tinha imprimido as páginas do lonely planet
referentes a Kiev. Há pessoal que curte mostrar a sua “alternatividade” dizendo
que não curte nada guias turísticos e essas merdas e não sei quê. Iá, é certo
que um gajo pode nunca usar o guia e passar muito bem numa cidade. Mas também é
verdade que seguindo as instruções dos guias há muito mais probabilidade de
acertar no que ver do que caminhar aleatoriamente pelas cidades, como muitas
vezes faço. É uma cidade altamente, na verdade, e no Verão será mil vezes
melhor. É muito acidentada, o que nos permite vistas porreiras. Os edifícios
são bacanos com esporádicas mansões altamente, sejam elas cor-de-rosa,
castanhas ou verdes. Tem igrejas a dar como um pau, e muito fixes também.
Costumo dizer que, para mim, o melhor da religião são os edifícios, que
normalmente são bonitos. E curto ainda mais as igrejas ortodoxas.
Mas o que curti mais foi o mosteiro de São Miguel. Acho que é das igrejas
mais fixes que já vi, a sério. O que é curioso, porque duzentos metros à frente
tem outro mosteiro, da Santa Sofia e este é património mundial e é preciso
pagar para entrar, contrariamente àquele que mais me seduziu, de paredes azuis
e abóbadas douradas.
Nessa noite ia sair com a Ksenia, íamos ver um concerto qualquer. Estava
também em contacto com outra rapariga que acabei por encontrar. A Hanna era
para me albergar em vez da Ksenia. Mas deixou de me responder aos mails por
isso tive de encontrar uma alternativa. Disse-me mais tarde que a sua mãe tinha
adoecido e ela tinha viajado para o interior para olhar por ela.
Nessa noite perdi-me um bocado, mas lá dei com o sítio. Foi uma noite
porreira, mas eu previ o que ia acontecer. É que estava a curtir, e estava
naquele ponto em que uma pessoa está fixe e fala com toda a gente, quando a
Ksenia quis ir embora. E não sei porquê tive ideia que ia ser assim mesmo antes
de sair de casa. Mas ‘tá-se bem, um gajo adapta-se. Mas foi fixe ter conhecido
a Hanna, que no dia seguinte me faria, sem querer, grande surpresa...
A Hanna é uma miúda de vinte e seis anos, jornalista mais ou menos
conhecida na Ucrânia, quanto mais não seja por ter apanhado o filho do
presidente bêbedo na rua e ter posto no youtube, tornando-se num vídeo famoso,
com dois milhões de visitas. É uma rapariga porreira, com um sorriso simpático
e muito descontraída. Pois a Hanna no dia seguinte disse que ia a uma festa
porreira, e que tinha dois convites, a perguntar se eu não queria ir. Ora a
Ksenia tinha falado num concerto qualquer (desta feita a sério, não um concerto
de dj como tinha sido na noite anterior) e eu tinha dito que ia. Não estava
mortinho por ir, mas iá, como tinha dito que ia, era um bocado foleiro dizer
que afinal de contas tinha mudado de ideias. É que, sinceramente, achei que me
fosse divertir mais com a Hanna, que tinha um estilo mais semelhante ao meu.
Pois nessa tarde fui ver Lavra, um mosteiro bastante grande, conhecido
pelas suas grutas. Foi fixe, mas um bocado estranho. Aquilo é conhecido mais
pelas grutas com os caixões de umas largas dezenas de monges – e é essa a cena
meio estranha. A única luminosidade advém de umas velitas espalhadas nada
eficazmente, e do pessoal que passa, quase toda a gente com a sua própria vela.
As passagens são estreitas e quase não dá para passarem duas pessoas ao mesmo
tempo. O pessoal passeia-se a benzer-se mil vezes e a beijar cada um destes
caixões onde, debaixo de um um manto está o corpo mumificado de um monge. É
interessante, vale a pena visitar.
Quando bazei caminhei p’rai duas horas ao longo do rio e depois fui para
casa. Quando cheguei a Ksenia disse que afinal não lhe apetecia ir ao tal
concerto. Eu estava todo partido, mesmo, tinha caminhado horas a fio, mas só
fiquei em casa dez minutos. Tinha uma mensagem da Hanna a dizer que era uma
festa Gogol Bordello e que se eu quisesse ir podíamo-nos encontrar daí a meia
hora. Liguei-lhe, disse “‘Tá tudo” e fui. Os Gogol Bordello são uma banda baseada
nos Estados Unidos mas que tem membros de diferentes países. Eugene Hutz, o
vocalista e figura principal, é ucraniano, tendo emigrado com os país quando
tinha entre dezasseis e dezanove anos. Em Novembro de dois mil e dez era para
ir ver os gajos com o João, em Portugal, já tínhamos os bilhetes e tudo. Mas os
gajos cancelaram e entretanto eu bazei para a minha viagem pelo que, nada
feito... Quando a Hanna me disse que era uma festa Gogol Bordello imaginei que
fosse um DJ a passar música deles e se calhar outros motivos ou cenas assim.
Assim, chegámos, e estava um DJ a passar música. Havia muita canalhada dos seus
dezoito anos mas estava um ambiente fixe. Era uma festa qualquer patrocinada
pela Nokia...
- Então e que DJ vem a seguir? – perguntei à Hanna.
- Não é DJ nenhum, são os Gogol Bordello! – respondeu, para meu espanto. E
foi altamente. Ver Gogol Bordello na Ucrânia tem uma certa especialidade. Não
sou muito conhecedor das músicas deles, o meu conhecimento vem do carro do João
e está para sempre associado a voltar do Porto às dez da manhã depois de uma
qualquer noite muito própria. Ainda assim curti bués e valeu muito mais a pena,
sem dúvida, ver Gogol Bordello sem pagar, do que pagar para ir ver outra cena
qualquer.
No final voltámos para casa. A Ksenia ficou tão surpreendida quanto eu
quando lhe disse que tinham, efectivamente, sido os Gogol Bordello a actuar.
No dia seguinte fui ao museu de Chernobyl. Não gostei muito. Tenho de
confessar que estava à espera de ver um porco com oito pernas que tinha lido
que tinham conservado para ilustrar as mutações, mas não vi nada. Mas ainda
assim, o pior foi que estava tudo em russo. Mas iá, valeu a pena, sempre dá uma
outra ideia, mais real, obviamente, sobre o que aconteceu, a magnitude e o
número de pessoas que afectou. Depois disto pensei em dar mais uma volta mas
não me apeteceu. Enfiei-me num cadé qualquer a fazer qualquer cena, depois fui
buscar a minha mochila e fui para a estação de comboio.
Uma cena a que achei um piadão – fora da estação de comboio há um
McDonald’s. Nada de novo. A cena é que este McDonald’s partilha uma parede com
o Mc’Foxy, que é igualzinho ao McDonald’s, só muda o logotipo. É a maior lata
da imitação que já vi. Mas na Ucrânia vale tudo, pelo que parece...
catorze
e onze, segunda, vinte e sete de Março de dois mil e doze
Vale de
Cambra, Portugal
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