O pessoal tinha-me aconselhado a passar à frente de toda a gente na espera
na fronteira. Não fiz caso e nem me lembrei disso até me ter deparado com o que
deparei.
Naquela segunda-feira de dezanove de Março acordei nas calmas, lá p’rás dez
horas. Tomei café, despedi-me das miúdas e pus-me a caminho. Apanhei o
autocarro, saí onde era suposto, e fui caminhando em direcção ao que me parecia
ser a Polónia. Era uma vila muito diferente de Lviv. Assemelhava-se mais àquilo
que eu imaginava da Ucrânia antes de lá ter ido, mas era jeitosinha. O pessoal
olhava-me de soslaio, talvez por não ver muita estrangeirada naquela altura do
ano. Eis que me apercebo que devia estar a mais de quinze quilómetros da
fronteira... O tempo ia avançando, e mesmo que caminhasse, a minha VIDA não ia
estar fácil... Mas lá fui, de dedo esticado, claro.
Passou um rapaz que ia com a namorada e já tinham dado boleia a uma
chavala. Apanharam-me e deixaram-me mesmo na fronteira. Para sair do país foi
tranquilo. Contudo, à medida que me aproximava da fronteira com a Polónia,
passei-me um bocado. Milhares de pessoas. Era uma fila estranha, porque o
pessoal não estava propriamente encavalitado uns nos outros. Era uma fila de
uns seis metros de largura, e parecia que estava dividida mais ou menos
informalmente por segmentos. Toda a gente, toda a gente com carrinhos de mão
descartáveis. Eram os traficantes. Álcool, tabaco, e sei lá eu o quê... A cena
é que não tinham nada nos carrinhos. Muitos deles tinham malas cheias, mas
apercebi-me que havia mais pessoal a trazer cenas para a Ucrânia do que a
levar. Sendo a Ucrânia um país mais barato, não sei o que pode ser... sei só
que são cenas pesadissímas. Reparei como o pessoal arfava e parava para
descansar a cada cem metros...
Fui-me enfiando nos buracos e às tantas estava na traseira do segmento da
frente. Aquilo ia avançando a passo de caracol, eram três e tal da tarde e eu
ainda tinha de chegar a Cracóvia, pelo que passados dez minutos decidi seguir o
conselho da Natália. Fiz sinal para os guardas, chamei-os e disse que tinha um
avião para apanhar, e a perguntar se podia passar à frente. Inventei mais um
bocado e os gajos deixaram-me passar. Passado três quartos de hora estava num furgão que me deixaria na estação de comboio.
Ia ficar em casa do Fernando, que tinha conhecido na internet através da
minha página no facebook. Segui as instruções do rapaz e lá p’rás onze
estávamos sentados em casa dele a ver o sporting e a bater um papo. O Fernando
é um jovem descontraído de Mirandela, e vive em Cracóvia com mais dois
espanhóis, um deles, o António, o primeiro espanhol que conheci que fal português.
Tal como o meu anfitrião, um gajo muito bacano e calmo. Tinham-se conhecido em
erasmus e quis o destino que lá fossem parar novamente. Trabalhavam ambos num
call-centre e provavam o amor tinham encontrado por aqueles lados.
Tinha pensado ir a Auschwitz no dia seguinte, mas depois não me apeteceu
muito... Assim fui ter com o David, outro tuga que tinha chegado a Cracóvia há
umas semanas com um saco na mão e uma incerteza em relação ao seu destino.
Felizmente acabou por encontrar trabalho também num call-centre, muito devido
ao seu domínio da língua inglesa, fruto da sua infância num país francófono de
que me esqueci.
Ao início pareceu-me um rapaz meio nervoso, mas acabámos por nos dar muito
bem. Fomos ver um museu que não era mais que as fundações de uma cidade subterrânea
na zona da praça principal e depois sentámo-nos num bar no paleio. O David é
daqueles que estava farto de estar em Portugal e de sentir a falta de
oportunidades, ou as eventuais injustiças mais frequentes do que deviam, como
cunhas e cenas que tais. Por isso fez-se à VIDA, e até ver, correu bem. Falámos
de política, de música, disto e daquilo, e quando demos por ela já tínhamos
mudado de bar e já eram oito e tal da noite...
Um bocado já lançados voltámos a casa do Fernando, jantámos e
encontrámo-nos com a Asha, que veio também sair connosco de seguida. Foi uma
noite porreira, e uma boa despedida da minha viagem...
Sem pregar olho cheguei ao aeroporto, sem saber que VIDA seria a minha,
sendo que não tinha imprimido o meu check-in. Mas há pessoal bacano se pedirmos
com jeitinho. Assim, com um sorriso e um chapéu de cabedal à cowboy que tinha
encontrado na rua, pedi a um rapaz de um rent-a-car e o gajo lá me imprimiu
aquilo.
E assim de repente estava no avião, mais uma vez a sentir tudo aquilo quase
como se não tivesse acontecido. Um mês de viagem entre breves dias na Roménia,
dez na Moldávia, duas semanas na Ucrânia e duas noites na Polónia. Todas
aquelas horas, dias e tempos como se tivessem sido um ano. É o que mais me
fascina na viagem. É esta noção completamente maluca e distorcida do tempo.
Lembro-me quando comecei, ainda estava na Roménia, e já me parecia que andava
na estrada há semanas. Não percebo mas adoro. Não sei se tem que ver com a
quantidade de pessoas que conhecemos e quilómetros que fazemos, se dos
conhecimentos que adquirimos. Sei que o nosso cérebro como que se mostra
cansado e saudavelmente envelhece com a constatação de que há mais VIDA em nós
do que a dos segundos que a nossa pele viveu.
catorze
e trinta e dois, terça, vinte e nove de Março de dois mil e doze
Portalegre,
Portugal
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