nota:
às vezes há aqui cenas mais pessoais da parte de quem mas conta. às vezes nao interessam, outras vezes interessam porque sao cenas em que eu acho que vale a pena pensar. naturalmente, quando assim é, mudo as características que pudessem ajudar a identificar essa pessoa
A Victoria vive sozinha. É uma casa ainda grande, com dois quartos, uma cozinha e uma sala de estar. Mas nesta semana está lá a ficar o Kevin porque ia ter a visita de um espanhol que conhecera online e não o queria albergar na sua própria casa. Por isso eu fiquei a dormir no sofá da cozinha, o que foi confortável o suficiente.
O Victor tem trinta anos e é de Sevilha. É um rapaz simpático mas muito calado. Assim mo pareceu inicialmente e assim o confirmei. Mas na boa. Como o Kevin ia trabalhar na segunda e eu ia passear, o Victor andou comigo. Chisinau não tem muito que ver, apesar de ser trinta vezes mais avançada e movimentada do que outras vilas por que fui passando. Apanhámos o autocarro até ao centro, e depois caminhámos a rua principal de um lado ao outro. Gosto de algumas igrejas de telhado azul, dá um ar porreiro. Alguns edifícios do estado são até bonitos, ainda que um tanto ao quanto taciturnos. Há muitas mulheres aqui a usar daqueles casaco de peles foleiros. Nem é por eu ser contra casacos de pele, são mesmo foleiros! Mais um indício de que como em certas cenas a Moldávia tem trejeitos do antigamente.
Almoçámos com o Kevin e depois à tarde fomos até ao museu. Modesto mas com algumas cenas fixes. Eu divirto-me sempre a olhar para um pote com três ou quatro mil anos e pensar em quem é que o fez, o que é que bebeu dali, onde foi buscar a bebida e cenas assim. E depois fomos dar mais uma volta. Foi mais ou menos isso. Passámos por um mosteiro também de manhã que, noutra cidade passaria despercebido mas que aqui acaba por ser algo que vale a pena ir ver. Quando o sol se pôs rapei algum frio. Não está tanto frio quanto já esteve, mas ainda assim um gajo gela um bocado.
Tinha combinado encontrar-me com a Victoria às seis fora do seu trabalho, e assim o fiz. Caminhávamos para um bar quando o Kevin lhe ligou, e o Victor foi ter com ele. Fomos ao bar preferido da Victoria, que se ia encontrar com uma amiga da universidade que tinha casado com um ucraniano, país onde vivia. O bar não tinha muito para ser o preferido de ninguém, mas depois ela explicou-me as cenas que lá aconteciam e curti a onda, além de ter tocado muito blues. O dono era amigo dela, e quando entrámos eles sentaram-se dois ou três minutos e ele esteve a dizer-lhe uma cena qualquer baixinho.
- Que é que se passa? – perguntei, quando ela se sentou à minha frente. Atrás de si tinha um pequeno palco improvisado e que servia precisamente para quando alguém queria improvisar qualquer coisa.
- É que... eles aqui têm peças de teatro às vezes pouco convencionais. Quer dizer, nada convencionais. São assuntos que tocam em discriminação e outras cenas mais sensíveis... Tipo uma que vai haver hoje chama-se “Mães Sem Vagina”... eu já a vi e fala um bocado sobre a hipocrisia dos pais exigirem algo aos filhos e depois agirem em contrário... cenas assim.
- Sim, e?
- E o que se passa é que alguém viu e não gostou e foi queixar-se. Agora ele estava a dizer-me que vem alguém do ministério da cultura e podem, ou multá-lo, ou fechar o sítio, ou outras cenas... – disse. Fiquei a pensar naquilo. Mas que cena. Este país precisa de acordar méne! Está bem que cada cultura tem a sua cena, mas quando uma cultura ou modo de estar inviabiliza a liberdade de expressão, está tudo fodido... Efectivamente o gajo apareceu. O dono estava a meter lenha na lareira quando foi chamado a sentar-se com o méne. Pelo que me disse a Victoria, o méne que tinha vindo até nem defendia aquela posição, mas as ordens tinham vindo de cima.
- Estão a pegar também por ele não ter uma licença de teatro... – disse, enquanto os gajos, ao lado, passavam os olhos por umas folhas.
Entretanto chegou a Matilda, amiga de universidade da Victoria, a Marina, com quem não falei muito nessa noite, e a Maria, com quem falei bastante, e que me deixou também a pensar também acerca das nossas decisões e em como jogar pelo seguro para mim não é, certamente, a melhor maneira. Acabámos as nossas cervejas e fomos para outro bar onde os melhores músicos de jazz da Moldávia se reúnem na última segunda-feira de cada mês para umas sessões de improviso. Já não sei como é que começou a conversa mas estava a falar com a Maria acerca do seu noivado. A Maria é uma rapariga atraente de origem russa, soxofonista profissional e está com o namorado desde Julho. Ao cabo de dois meses estava noiva. Mas havia ali algo na forma como ela falava dele que me deixou reticente.
- Ele é inteligente, é carinhoso, simpático... – e ia enumerando várias características que o faziam parecer o homem de sonho de qualquer mulher. Tanto que me parecia que estava a ser demasiado racional.
- Ok... mas ama-lo? – ela olhou para um canto da sala qualquer, como quem prepara a forma de responder.
- Não é aquele amor... mas sinto-me bem com ele. É orgânico, sinto-me bem na sua presença.
- Mas não ficas tipo entusiasmada quando o vais ver... não tens as borboletas na barriga...
- Não... Eu tive uma relação antes desta que me fez muito mal. Amava-o muito e ele a mim, mas estávamos sempre a discutir, eram muitos sentimentos, e eu passei muito mal. E não quero nada assim de novo – respondeu, como se estar apaixonada fosse ter uma infecção.
- Mas não tem de ser assim... é possível uma pessoa gostar verdadeiramente de outra e isso não significar que se passe mal ou se sofra constantemente...
- Sim, talvez... Mas olha... foi uma decisão que tomei. Eu fui tendo ao longo dos anos várias propostas para ir tocar para o estrangeiro... e dizia que não porque estava na outra relação. Depois acabei, tive outra proposta e disse que sim. Tive de comprar um saxofone novo, que custou quatro mil euros. Eu só tinha mil, mas eles disseram que pagavam e depois quando eu me mudasse para a Inglaterra ia pagando. E entretanto estava já mais ou menos numa relação com o meu namorado. E quando lhe disse que ia embora, ele pediu-me para não ir. Levou-me a jantar... ele lê muito... e começou a citar Freud e mais não sei quantos acerca de como as pessoas podem mudar...
- Para quê? – interrompi.
- Bem,... a dizer que ele podia mudar... e que gostava muito de mim e queria tornar aquilo em algo sério, e que se eu ficasse na Moldávia ele me pagava o resto do saxofone e se podiam casar. E olha... eu tomei essa decisão, aceitei e agora é esse o plano – concluiu, mais ou menos. Passei-me um bocado. Não queria meter-lhe bichinhos na cabeça, acho que não era o meu lugar começar ali a discursar acerca de como eu acho isso um plano estúpido. Mas é que acho... e por mais que tente acho difícil distanciar-me e dizer “ah iá cada um escolhe o que quer e tal”. Pois claro que sim. Mas foda-se, se quando o pessoal está perdido de amores e se casa, já assim muitos casamentos acabam na sarjeta, não estará a miúda a condenar-se um bocado aceitando casar-se com um gajo com quem namora há dois meses porque já tem vinte e nove anos e já está na altura de constituir família e ele lhe paga o resto do saxofone?
A noite avançou até à meia e o pessoal dispersou. Estava a chegar a casa com a Victoria quando a Maria, que tinha apanhado um táxi para sua casa, lhe enviou uma mensagem a perguntar se podia aparecer lá. Apetecia-lhe estar mais um bocado. Estivémos na cozinha p’rai quarenta e cinco minutos a falar não sei de quê, até que ela foi embora e nós fomos dormir.
catorze e seis, quinta, um de Março de dois mil e doze
Comrat, Moldávia
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