Que
loucura de entrada na Nigéria! A entrada na Guiné foi espetacular e teve
grandes momentos, alguns negativos pelo esforço físico a que fui sujeito, mas
positivos por todo o resultado. A entrada na Nigéria... bem, nem sei que dizer.
No
meu último dia no Benim a minha ideia era ir cento e vinte quilómetros para
Norte, até Ketou. No dia seguinte faria cem quilómetros até Abeokuta, já na
Nigéria e, finalmente, no dia seguinte faria cem quilómetros para chegar a
Lagos. Tudo isto porque queria evitar a fronteira da costa. “É infernal”,
alguém me disse. Caso contrário poderia estar em Lagos num dia.
Pedalei com
algum esforço, sentindo a falta do pedal por quinze dias e, passado sessenta e
seis quilómetros, depois de passar a simpática vila de Pobé vi, à saída, uma
placa a dizer “Nigéria”. Não sabia que existia ali uma fronteira. Confirmei com
os guardas e sentei-me no chão, a pensar. Sabia que a fronteira de Ketou era
tranquila. Mas aquela fronteira ali poderia salvar-me um dia. Axantrava para o
resto do dia e, no dia seguinte, poderia estar em Lagos. Ao meu lado estavam
uns putos a fazer conversa enquanto tocavam na bicicleta.
- Achas que
posso meter a minha tenda fora de tua casa? – perguntei, ao mais velho.
- Hum... tens
ali a polícia... podes passar a noite com eles – respondeu. Levantei-me e
pedalei duzentos metros para falar com os guardas que estavam sentados numa
cabana de bambu. Estes mandaram-me de volta a Pobé, dizendo para ir ter à
esquadra que, certamente, eles poderiam albergar-me. Pedalei quinze minutos e
cheguei à esquadra. Eram dois edifícios, um rectangular e outro redondo. Bati
na porta aberta do redondo e entrei, vendo uma senhora a uma secretária e um
homem a dormir numa cama. Expliquei-lhes a minha situação e ela mandou-me ir
falar com alguém no outro edifício. Lá fui, falei com um guarda, e ele foi
chamar outro, este mais velho. Voltei a dizer-lhe o que estava a fazer, e que
não tinha muito dinheiro para um hotel e ele disse que não me podiam albergar,
e que devia ir falar com o pessoal da Casa do Povo. Ainda era cedo, por isso
perguntei por um cyber e estive uma
hora na net à procura do trajecto do
dia seguinte. Entretanto apareceram os putos com quem falara previamente.
- Viemos aqui
para te levar à esquadra.
- Já lá fui.
Eles disseram para ir à Casa do Povo. Isso é onde?
- É aqui a
Casa do Povo – respondeu o Chris, o méne que trabalhava no cyber.
- Ah! Então,
bem... – e lá expliquei de novo. O Chris levantou-se e guiou-me a uma sala
contígua à sala do cyber onde estava
o presidente da câmara a assinar uns papéis com dois homens. Estivemos ali meia
hora. Não sei bem se não me percebiam, ou se era eu que não os percebia. Ou
ambas as situações. Cheguei a dizer que poderia dormir mesmo ali, no chão da
biblioteca da Casa do Povo, mas se assim fosse só poderia bazar às dez, quando
abríssem.
- Ficas
comigo! – disse o Chris, a dada altura – Podes esperar até às nove da noite,
quando saio do trabalho?
- Claro,
claro! – respondi, com um sorriso. Fiquei na net até às nove e quando ia pagar ele disse que agora já éramos
irmãos, não precisava de pagar. Queria, pelo menos, pagar-lhe o jantar, mas
quando saímos fomos directos a sua casa, eu seguindo a sua mota com a Mónica.
Quando
chegámos vi o cenário mais ou menos habitual. Duas ou três casas e um pátio
onde o pessoal cozinha, dá banho aos filhos, descasca cenas ou simplesmente
conversa. Abriu uma sala vazia com uma secretária com um computador no meio e
disse que ficaria ali. Apareceu depois com um balde de água e disse que podia
tomar banho, se quisesse. De banho tomado, convidou-me para sua casa, onde
jantámos com a sua recente namorada, que tinha vindo do Norte do Benim para
viver com ele. Era um rapaz da minha idade, alto, bigode fino, vesgo de vez em
quando e boa onda.
No dia
seguinte tomámos o pequeno-almoço juntos num cafezito na rua principal, fomos
reparar o meu pneu da frente a um amigo seu e parti.
Os dez
quilómetros até à fronteira foram difíceis mas sem custa muito. Quando sabemos
que são só dez quilómetros não custa. É pior quando sabemos que são trinta, e
ainda pior quando não fazemos a mínima ideia. Cheguei à fronteira e encontrei o
presidente da câmara, com que tinha falado no dia anterior. Ele apontou para o
casebre onde deveria ir mostrar o meu passaporte mas, vendo a bandeira da Nigéria,
perguntei se já tinha passado a fronteira do Benim. Já a tinha passado há três
ou quatro quilómetros! Voltei para trás, levei o carimbo, e voltei à fronteira
nigeriano, dirigindo-me ao casebre. No alpendre podia ver uma secretária, com
um homem esguio sentado atrás da mesma. De cada um dos seus lados dois homens,
um com pinta de actor e uma tatuagem grande no braço esquerdo, o outro mais
gordo com cara de antipático que se conquista facilmente. Estava um chisco
apreensivo por ouvir tanto sobre corrupção na Nigéria, mas acabou por ser na
boa. Entrei em agradável paleio com eles e quase parecia que éramos amigos.
Pedi-lhes para carimbarem o meu passaporte sem usarem nunhuma página virgem e o
méne foi tão cuidadoso com isto que meteu o carimbo num canto que,
posteriormente, quase ninguém conseguia encontrar sem eu lhes dizer onde
estava. Meteu-me foi só dez dias de estadia no país.
- Não, não...
eu tenho direito a duas semanas, mas é a partir do momento em que entro no
país. Não é a partir do momento em que me dão o visto. Porque eu tenho um mês
para entrar no país e depois duas semanas a partir daí – disse. Se eles só me
dessem duas semanas estava tramado.
- Ah, sim,
sim... – respondeu. Voltou a olhar para o passaporte, fez qualquer coisa e
entregou-me. Por sorte, ou por não ter confiado verdadeiramente no seu “Ah,
sim, sim”, voltei a espreitar antes de bazar. Não tinha feito nada!
- Repara, aqui
diz que posso entrar no espaço de um mês. Se fossem duas semanas a partir da
data em que me davam o visto, não faria sentido – voltei a dizer. O homem
levantou-se, falou com o chefe, adulturou a data para o dezoito de Setembro,
rubicou por cima e deu-me o passaporte.
Depois de
tirarmos umas fotografias, fiz-me ao caminho. De início apareciam várias
gasolineiras para os benineses virem buscar gasolina para contrabandearem e
algumas vilas em que parecia que estava toda a gente à espera, numa delas um
pneu de camião a arder para dar aquele ar pseudo-nigeriano que um gajo imagina.
Começaram a aparecer os primeiros bloqueios de estrada com polícias com tacos
de golfe que aguentavam na diagonal no meio da estrada para os carros pararem,
mas ia-me safando. Até que me mandaram parar. Segui sempre, os ménes, do lado
esquerdo, gritaram. Ainda pensei em seguir sempre, mas parei. Era um grupo de
cinco polícias, todos sentados, na boa, a perguntarem-me de onde era e o que
estava a fazer, sem se levantarem. Eu respondi, em pé, em cima da bicicleta, no
meio da estrada, e um deles perguntou-me se eu tinha um livre-trânsito. “Aqui
vamos nós”; pensei. Fingi que não ouvi e, para desviar a conversa, perguntei
onde poderia comprar um cartão sim para o telemóvel. Ao mesmo tempo que
perguntava um polícia segredava qualquer coisa ao ouvido do méne que tinha
pedido o livre-trânsito, provavelmente algo como “Caga que este careta tem cara
de pobre”.
Entretando
cheguei à primeira cidade. Comprei um cartão sim para o telemóvel e perdi aqui
meia hora. Não sei se é por causa de medo de terrorismo, mas é preciso um gajo
registar-se. Sentei-me com um rapaz em frente a um computador e dei os meus
dados todos. Até a minha fotografia tirou. Perguntei-lhes a direcção para Lagos
e os gajos mandaram-me seguir em frente. Tinha uma sensação que era à direta,
mas fui com o que disseram. Devia ter estranhado quando me disseram que lagos
era a cinco quilómetros! Incrível a falta de noção de distância por estes
lados. Incrível, mesmo! Fiz-me à estrada novamente e avisei a minha anfitrião
que, afinal de contas, talvez chegasse nesse mesmo dia, se não fosse parado
pela polícia muitas vezes. Não fazia a mínima ideia do que me esperava. Passei
p’rai por cinquenta ou sessenta bloqueios e fui parado oito vezes nus trinta
quilómetros. Era impossível saber em quantos porque, ao sair de Porto-Novo, dei
pela falta do meu conta-quilómetros. Perguntei aos putos que viviam no prédio
do Damien e da Myriam se o tinha encontrado e disseram que não, ficando eu com
a sensação de que mentiam. Nesta viagem na Nigéria apercebi-me da falta que
faz, porque é foda não saber quanto fizemos e quanto falta.
Num dos
bloqueios a cena era surreal. No espaço de um quilómetro havia aí umas quinze
barracas! Suponho que uns mandassem parar uns e, enquanto se ocupavam destes,
as barracas mais à frente apanhavam os outros, como se estivessem à pesca.
Quando tinha oportunidade referia que ia ficar em casa de uma amiga em Lagos,
porque não tinha muito dinheiro para hotéis, assim os gajos ficavam com essa da
falta de guito na cabeça. Neste bloqueio o guarda perguntou-se se tinha
permissão para andar ali. Não tinha, nem havia tal coisa, mas disse que sim. Se
ele me fizesse mostrá-la fazia-me de desentendido e mostrava-lhe o visto. Mas
nem o passaporte cheguei a mostrar. Parei quase meia hora em dois bloqueios
mais à frente, tirando tudo o que tinha de todas as minhas malas, sob o olhar
atento de um polícia com uma garrafa de bagaço na mão. Noutros mostrei só o
passaporte e disse que não, não tinha trazido nenhuns “dólares portugueses” e
num ou noutro o mais importante era os guardas tirarem foto comigo para pôr no
facebook.
Mas, todas
estas situações deixaram-me de rastos. De cada vez que parava tinha de reagir
sempre na boa, sempre simpático, e quando encontrava um daqueles que é má onda
por natureza este esforço era ainda mais desgastante. Estava sempre à espera que
me encostassem à parede a pedir dinheiro e, como sabia que não cederia logo à
primeira, antecipava situações desagradáveis. E... iá... além disto, detesto o
desplante dos ménes que pensam que um uniforme lhes dá o direito a estarem
bêbedos com armas ao ombro a pedir dinheiro aos outros porque é assim que os
outros fazem. Eu sabia que aquela bola de calor no peito era psicológica mas,
apesar disto, não conseguia simplesmente fazer o que faço sempre, pensar “Que
se foda, ‘tá-se bem” e seguir em frente. Naquele momento, aquele ardor, aquela
adrenalina, era física, e não conseguia domá-la. Além disto comecei a ficar
extremamente cansado, sentindo-me como um burro com um cenoura à frente. Ia
percebendo que não ia chegar a Lagos, e não tinah bateria no telemóvel para
avisar a Ema, em Lagos. Lá me lembrei de ver se, após meses, podia usar o
telemóvel português. “Tem de haver uma solução para isto”, pensava. Acho que,
quase sempre, há uma situação inteligente para resolvermos os nossos problemas.
Acredito piamente nisto. A cena é que nem sempre a encontrámos. Mas todos nós
já estivemos numa situação em que parecia que não havia escapatória
absolutamente nenhuma e depois nos lembrámos de algo inteligente.
Pois, estava
eu em XXX e lembrei-me de tentar o telemóvel português, que nãu usava há meio
ano, e enviar mensagem à Valentina, em Vale de Cambra. Dei-lhe os meus dados e
pedi-lhe para ir à minha conta no couchsurfing e ver a morada e número da Ema. Pedi-lhe
também para ver os quilómetros que me separavam de Lagos. Ela assim o fez,
respondeu, e pude contactar a minha anfitriã. Disse também que me faltavam...
50 quilómetros! Não ia dar. Momentos antes tinha parado num bloqueio de estrada
para pedir água. Perguntei quantos quilómetros faltavam para Lagos e eles disseram
30. Fiz as contas e chegaria a Lagos lá p’rás seis e meia. Era arriscado.
Anoiteceria pouco depois dessa hora, e não gostava de chegar a cidades depois
do pôr-do-sol. Especialmente numa grande cidade nigeriana, país com uma
reputação nem sempre boa. Mas quando vi que eram 50 comecei a procurar uma
solução. Ainda equacionei apanhar boleia de um parente que ia para Lagos e
depois voltar no dia seguinte e fazer o resto a pedal, mas já tinha feito isso
antes e era sempre uma embrulhada tremenda.
Andei uns
quilómetros e vi, do outro lado da estrada, um mercado com centenas de vacas e
várias pessoas sentadas debaixo de uma barraquita. Atravessei a estrada, entrei
no mercado debaixo do olhar atento de toda a gente, e abordei o primeiro rapaz
que vi. Expliquei de onde vinha e o que estava a fazer e disse que não tinha
dinheiro para um hotel, perguntando se não sabia de alguém que me pudesse
albergar. Disse-me para ir falar com o chefe. Passei entre as vacas e encontrei
o homem sentado com outros velhotes, de túnica castanha tipicamente muçulmana,
um chapelinho branco e barba. O rapaz traduziu-lhe o que disse e o homem disse,
peremptoriamente, que não me podia ajudar. Voltei à estrada, pedalei mais uns
minutos, e vi uma casa à minha direita, onde uma senhora cortava erva. A mesma
cena... perguntei-lhe se podia acampar fora de casa dela, ela riu-se e
mandou-me falar com um homem mais abaixo. Apareceu um homem dos seus quarenta,
baixito, bêbebo e que falava como se fosse um crime ser ouvido. De início
pareceu-me que me tinha aceitado. Segui-o em direcção a uma casa maior, apontou
para mas malas da bicicleta, para as tirar, e apontou para a bicicleta e para a
casa. Peguei nela, subi as escadas, e entrei. Nisto apareceu outro parente, este
completamente bêbedo, que me ofereceria uma meia hora bastante frustrante.
Primeiro dizia que a decisão não era dele. Depois disse que eu podia lá dormir
se pagasse. Depois dizia que não me podia ajudar. Perguntou-me seis ou sete
vezes se eu sabia o que se estava a passar no país, perguntou-me cinco ou seis
vezes de onde eu era, o que estava ali a fazer, e de que é que precisava. Eu já
estava a ficar desesperado e só o queria mandar à merda. Não por não me deixar
ficar lá, isso era o seu direito que eu, apesar de mal habituado e um pouco
frustrado, percebia. Mas toda aquela repetição, toda a hesitação e o facto de
às vezes me dar esperança que ia poder estender-me ali e depois a seguir
perguntar-me se eu sabia o que é que se estava a passar no país.
- Sim, senhor,
sei, mas acho que não devia ser por alguém, algures, estar a fazer coisas más,
que nós devíamos fechar as nossas portas para o resto do mundo. Mas okay, olhe,
eu estou aqui a perder o meu tempo, vou-me embora! – disse, já com a bicicleta
cá fora, enquanto montava os alforges.
- Eu quero
ajudar-te... – disse o gajo, com dificuldade em aguentar-se em pé – Vai à
mesquita.
- Sim, okay,
obrigado pela ajuda – disse, secamente, e parti. Passei pela bomba de gasolina,
não podia ficar lá, passei por uma serralharia com cinco ou seis pessoas,
também não me podia albergar. Estes ainda perguntaram se eu era muçulmano.
Quando disse que era de um país cristão disseram-me que não havia igrejas por
ali. Continuei a andar e o sol ia desaparecendo. Tinha um pacote de massa e um
punhado de sal que tinha comprado à senhora que me deixara acampar no seu
pátio, no Benim, mas não tinha água para cozinhar. Ou beber. Começava a
contemplar simplesmente esconder-me num sítio qualquer e acampar, passando a
noite sem comer ou beber, o que ia ser muito difícil, sendo que poucas vezes
nesta viagem me tinha sentido tão sequioso.
Enveredei por
mais um caminhito onde os eventos teriam uma reviravolta. Falei com uma senhora
que estava sentada fora de sua casa e esta disse, peremporiamente “Nem
pensar!”. E com este “Nem pensar!” eu concluí que, ou estava a ter muito azar,
ou a Nigéria era mesmo diferente... Contornei a casa. Havia um quintal nas
traseiras e outra casa do outro lado. Lá vi um senhor a fumar um cigarro
sentado num muro fora da porta.
- Desculpe,
senhor. Estava a caminho de Lagos, de bicicleta, mas estou muito cansado e já
não vou conseguir lá chegar hoje. Não tenho dinheiro para um hotel, mas tenho
uma tenda. Será que se importava que eu montasse a minha tenda aqui fora de sua
casa?
- Eu não me
importo. Mas não sou eu que mando. Tens de perguntar ao chefe. Ele já vem. Ele
deve dizer que sim, não te preocupes – respondeu. Eu questionava-me se deveria
de arriscar que anoitecesse e esperar ou arriscar perder aquela hipótese e ir
embora à procura de outros pousos, mas o velhote apareceu de imediato.
Disse-lhe o mesmo, e quando hesitou e me começou a falar no Boko Haram fui
buscar o meu passaporte e mostrei-lho. “Está a ver, Portugal, Europa!”, disse,
apontando para o nome do nosso país. O homem disse que não se importava, mas eu
tinha de ir perguntar ao rei. Okay, dois em três já estavam, só faltava o homem
final. Como entretanto já se tinha reunido um pequeno grupo ali à nossa volta,
dois deles foram encarregues de me levar ao líder. Descemos a estrada de terra,
atravessámos a via rápida, voltámos às estradas de terra, passámos algumas
casas e, num alpendre, do outro lado de uma grade vi o rei, vestido da mesma
forma que muitos outros, com uma túnica de seda ou cetim até aos pés, desta
feita roxa. Aproximámo-nos e vi os dois rapazes que estavam comigo a
baixaram-se, agarrando o tornozelo direito com ambas as mãos, uma espécie de
vénia que nunca tinha visto. Segui-lhes o exemplo. Segui o mesmo paleio que
tivera com o chefe, entreguei-lhe o passaporte, e ele lá disse que não tinha
problemas com a minha estadia. Entregou-me o documento e quando estendo a mão
para o receber ele diz, severamente, “Não, nós não fazemos isso aqui!”.
Desculpei-me, troquei a mão esquerda pela direita e com esta peguei no
passaporte. O tabu da mão esquerda.
Fixe. Tinha
custado, mas tinha, finalmente, um sítio para dormir! Ou será que tinha?
Quando
regressei o senhor estava no mesmo sítio, a fumar outro cigarro. Tinha reparado
que a sua vizinha vendia água e fui comprar quatro litros. Quando voltei tirei
a tenda da bicicleta e explorava as minhas possibilidades.
- Posso
metê-la ali?
- Podes. Mas
ali está sujo. Mete noutro sítio qualquer – respondeu. Estava a olhar para um
pedacito de terreno entre as duas casas quando chegou um grupito de malta. Um
deles, com uma t-shirt amarela fluorescente, chamou-me. Aproximei-me e ele
disse-me que eu não podia dormir ali. “Ai cum caralho!”, pensei.
- Porquê?
- Porque não é
seguro! – respondeu.
- Não, não há
problema, não se preocupe. Eu falei com o chefe, com o rei, eles aceitaram,
disseram que não há problema – respondi. O homem, que parecia ser um tipo de
porta-voz daquele grupo, insistia. Não era seguro, tinha de ir à polícia que
eles podiam albergar-me. A cena começava a esquentar um bocado, e eu ia
tentando manter a calma. Estava cansado e só queria montar a minha tendinha,
cozinhar a minha massa com sal e estender-me. E aqueles caralhos agora tinham
resolvido que não podia dormir num sítio que nem sequer era deles! – Ouça, eu
tive o cuidado e o respeito de seguir os canais apropriados... falei com quem
vive nesta casa, ele disse que não havia problema. Falei com o chefe, disse que
não havia problema. Falei com o rei e ele também disse que não havia problema.
E agora você está a querer dar-me problemas?
- Falaste com
o rei? Como é que eu sei disso? – perguntou, enervado.
- Este rapaz
veio comigo e pode confirmar – respondi, calmamente.
- Mas o rei
não tem o direito de dizer se tu podes dormir aqui ou não!
- Bem, não me
leve a mal, mas você também não – respondi.
- Mas eu falo
pela comunidade! – atirou, já a chegar a um nível má onda.
- Bem, você
está a começar a ficar demasiado zangado... não vou continuar esta conversa –
respondi. Ouve uma pausa com os gajos a falarem entre eles e o porta-voz volta
à carga.
- Ouve... eu
sei como é que vocês no teu país lidam com pretos! – aqui passei-me um bocado.
- Você não
sabe um caralho como é que eu me dou com pretos! – lancei, irritado, com um
dedo no ar – Não me venha p’ráqui falar de racismos!
- Ninguém
falou em racismo. Se algum nigeriano aparecer à tua porta que é que tu fazes?
- Abro-lhe os
braços!
A conversa deu
algumas voltas. Queriam que eu fosse para a esquadra e dormir lá mas eu não
queria e achavam isto suspeito. Expliquei que receava que me pedissem dinheiro
e quando me perguntavam porque é que eu dizia isso eu dizia que era o que tinha
acontecido nesse mesmo dia. Deu-me a ideia que dois ou três é que estavam a
manipular aquela trupe que, noutras circunstâncias, limitariam-se a ver o
branco estranho a montar a sua tenda. Eu próprio, noutras circunstâncias,
sabendo que não estava a fazer nada de mal, marimbar-me-ia para eles todos e
montava a minha tenda e estava feito. Mas aquilo estava a começar a dar
estrondo e não estava a curtir. Apesar de sentir que tinha razão, sentia-me
meio foleiro por vir do nada e estar a ser a causa de revolta entre aquela
gente. Não pagar para dormir dá-nos estórias e bons momentos, é verdade, mas é
má onda se começa a proporcionar momentos menos bons a outras pessoas. Pelo
que, voltei à bicicleta, recomecei a montar as cenas, e estava pronto para
partir. O pessoal foi acalmando e vinham com o mesmo de “Só te queremos
ajudar”.
- Se realmente
me querem ajudar, será que não há ninguém nesta gente toda que não tenha um
pedaço de chão onde eu possa passar a noite? – perguntei.
- Podes ficar
comigo – disse um deles, um jovem alto vestido à italiana, com uma t-shirt
justa e umas calças de ganga com um cinto preto. Tudo bem. Disse-me para seguir
o seu carro. Entreguei-lhe o meu saco de plástico com as águas, pedindo-lhe
para as levar, e ainda ouvi alguém, preocupado, a perguntar-lhe o que era.
Andámos quinze minutos e quando parámos, para minha surpresa, vi a esquadra da
polícia.
- Não tinhas
dito que me podias albergar? – perguntei, confuso. O sol já se tinha posto há
algum tempo e a noite não fazia cerimónias.
- Aqui é
melhor – respondeu. Enganou-me. Fiquei um bocado triste com aquilo.
- Sabes porque
é que eu gosto de África? Ou porque é que tenho vindo a gostar, tirando o dia
de hoje? Porque as pessoas não têm merdas? As pessoas querem ajudar e ajudam.
As pessoas estão contentes de poderem abrir a sua casa e os seus corações! Mas
aqui, vocês parece que têm medo de todos os lados. Quero acampar, têm medo que
alguém apareça e faça qualquer coisa. Peço para me albegarem e têm medo que eu
seja um Boko Haram! Méne! Esse medo cega-vos e deixa-vos incapazes de poder
ajudar alguém que precisa... que é mais ou menos como nós somos, lá no
Ocidente...
Ele tinha
falado com um méne, que depois foi falar com a polícia, que depois me veio ver,
tinha eu encostado a Mónica a uma parede debaixo de uma telhado de zinco.
Apareceram dois polícias com um foco, um mais forte, outro mais franzino.
- Fica aí! Não
te aproximes! – gritou o mais forte, quando me tentei aproximar para os
cumprimentar. Entranhei, e só mais tarde é que percebi que o seu receio era que
eu explodisse! – Que é que trazes contigo?
- Bem... tenho
a minha bicicleta... e as minhas malas...
- Mostra-me
tudo!
E passei a
próxima meia hora a retirar tudo dos meus alforges para o gajo ter a certeza
que não trazia nunhuma bomba. À medida que o ia fazendo fui-me apercebendo de
que era a primeira vez na minha VIDA em que me sentia realmente discriminado!
Pensava naqueles muçulmanos que, por usarem barba e as suas vestes
tradicionais, eram escolhidos “aleatoriamente” para buscas nos aeroportos,
pensava no Sofian, meu anfitrião em Agadir, a pedalar na sua bicicleta a
caminho da mesquita vestido com a djellaba
e a ser parado, sem mais nem menos. O que eu estava a passar naquele dia era
apenas uma pequena amostra do que muitas pessoas passam todos os dias.
Quando
finalmente acabei de mostrar tudo o que tinha ao polícia, ele suavizou um
bocado. Com o meu passaporte na mão, disse para o seguir. “Por mim podes ficar,
mas temos de ir perguntar ao chefe”, disse. Deixámos o polícia franzino com a
bicicleta, passámos por uma porta e entrámos num jardim tão grande que mais
parecia um parque. Tanto, tanto espaço, para a minha tendinha...
Atravessámos o
jardim, com uma árvore no meio, e entrámos na esquadra. Tinha um balcão e
alguns polícias sentados do outro lado, um deles atrás de uma secretária. O
polícia que vinha comigo disse-me para esperar do lado de cá do balcão e foi
falar com o chefe. “Formalidades”; pensei, enquanto me questionava se dormiria
numa cela ou se montaria a tenda no jardim.
- O chefe diz
que nós não temos autoridade para te deixar dormir aqui. Não podemos permitir –
disse-me, para meu completo desagrado. Estávamos já cá fora. Eram nove da
noite.
- E agora? Que
é que eu faço?
- Bem... ele
disse para tu ires até à próxima esquadra. Lá eles podem aceitar-te.
- E isso é
onde?
- Deves
demorar p’rai uma hora a chegar lá – Uma hora? Uma hora àquela hora? Estava
tramado. Parecia que estava destinado a não encontrar um pouso aquela noite e
andar toda a VIDA à espera de um sítio para encostar a cabeça – Ou então...
podes deixar-me pagar-te um quarto de hotel – disse, para minha surpresa,
apontando com o queixo para um hotel do outro lado da estrada.
- Não, isso
não...
- Porquê?
- Porque não é
justo para si. É que eu tenho dinheiro. Não o tenho é aqui... – respondi,
enquanto se aproximava outro guarda, vestido à paisana, com uma kalashnikov
pendurada no braço. O meu amigo explicou-lhe o que se passava.
- A esta
hora... é muito longe... – respondeu, afastando a hipótese da outra esquadra.
Trocaram algumas palavras em confidência.
- Fazemos
assim... – disse-me o meu amigo – O chefe sai de serviço às onze da noite. Tu
escondes-te lá fora e quando ele for embora eu vou-te buscar. Pode ser?
- Pode! –
respondi, contente por ter uma solução que me parecia mais palpável. Saímos da
esquadra, montei as minhas cenas na bicicleta novamente, e caminhámos cinquenta
metros, passando por várias lojas fechadas, umas com grades por fora.
- Mete-te ali
– disse, apontando para a entrada de uma loja mais ou menos a meio do edifício,
coberta por um telhado de chapa que ia de uma ponta à outra – Depois venho-te
buscar – e bazou. Encostei a bicicleta às grades do lado e sentei-me no chão,
encostado ao portão de ferro da loja, a pensar na peculiaridade daquilo tudo. À
minha frente via carros a passar na via rápida e, por vezes, pessoas passavam
no caminho de terra, quatro ou cinco metros à minha frente, sem fazerem a
mínima ideia que eu estava ali. Deixei
o tempo passar suavemente enquanto ouvia James. “Getting away with it all
messed up, that’s called living”. Ia ficando cada vez melhor. Méne,
estava na Nigéria! Tinha passado momentos desagradáveis naquele dia, tinha
chateado algumas pessoas. Mas não tinha feito nada de mal. Pensava, olhava para
dentro, reflectia, e não me sentia culpado acerca de nada. Não sentia que
estava a negar cenas para me sentir melhor. Pensava nos outros que se tinham
chateado por eu querer acampar ali... eu não os tinha zangado, os gajos é que
decidiram abraçar uma responsabilidade que não era deles, e lá o porta-voz é
que decidiu começar a espingardar daquela forma. Portanto, que se lixe! E tinha
passado, já! Naquele momento, estava já de volta à boa onda das pessoas. Sim,
era uma pessoa que, inicialmente, me julgou por terrorista mas isso, também, já
era passado. Tinha-me dado uma oportunidade e revelara-se depois quem era por
detrás daquela máscara de medo. Estava bem por adorar a imprevisibilidade
daquilo tudo. Era impossível ter planeado aquilo... Podia ter feito por ter ido
a um banco levantar dinheiro para estar “preparado”, é certo. Mas não fui. Não fui
pensando que “é assim que as boas estórias acontecem” mas por estar mal
habituado à facilidade em acampar em África ou ser recebido por alguém. E isso
não aconteceu... mas aconteceu outra coisa qualquer!
Pouco antes
das onze o polícia apareceu, com o seu foco.
- Tudo bem?
- Tudo.
- Se calhar
até podes ficar aqui, que dizes? – perguntou. Fiquei mais aliviado, porque nos
últimos minutos pensava que ainda ia pôr o méne em apuros por mentir ao chefe.
- Por mim pode
ser. É tranquilo?
- Sim, é
tranquilo, ninguém te vai atacar.
- Fixe. Já
posso cozinhar, então? – tinha-lhe pedido para cozinhar enquanto esperava mas
ele tinha dito que era melhor não, para não dar bandeira.
- Quanto
tempo?
- Sei lá, dez
ou quinze minutos.
- Okay, pode
ser. Eu venho ter contigo mais daqui a um bocado – e bazou. Tirei o meu fogão,
o pacote de massa e o punhado de sal e saí da entrada da loja, afastando-me uns
metros para, caso alguém me visse, não soubesse onde estavam as minhas coisas –
Que é que estás a fazer? – perguntou quando regressou, vinte minutos depois?
- Massa.
- Não tens
tomate, nem cebola, nem nada?
- Tenho sal! –
respondi, com um sorriso, olhando para cima com o saco de plástico na mão.
Enquanto a água ia aquecendo íamos conversando e ela ia-me perguntando acerca
da minha viagem e da minha VIDA. Onde tinha trabalhado, o que tinha feito,
cenas do género.
- Faz-me um
favor. Volta para a Inglaterra! Lá é que é bom!
- Mas eu agora
quero estar aqui.
- Aqui? Já
viste como estás? – disse. Eu pus-me nos seus olhos. Vi um foco a apontar para
um branco de barba e cabelo comprido com uns calções estranhos, uma t-shirt
amarela toda negra, sentado numa pedra com um fogão à frente onde assentava um
tacho com massa e sal.
- Sim, já vi.
E estou bem. Muito bem, até.
- Bem? Assim?!
- É verdade. É
a minha cena, meu amigo.
Quando acabei
de comer comecei a arranjar as coisas. Meti os alforges num canto uns em cima
dos outros e amarrei-os à grade da loja do lado. Puxei a bicicleta um pouco
mais para o canto e prendi-a com o cadeado à grade. Tirei o meu saco-cama
extra, estendi-o no chão, depois o saco-cama normal, e estendi-o também. Enchi
a minha almofada de ar e estava pronta a minha cama. Estava a tirar as botas
quando apareceu o guarda mais franzino de antes.
- Queres um
refrigerante? – perguntou.
- Se tiveres,
era bom.
- Eu vou
comprar.
- Não, deixa,
se não tens não precisas de comprar, obrigado.
- Não, eu vou,
já volto.
Apareceu
passado cinco minutos com uma Fanta de laranja fresca. Entregou-ma, deu-me as
boas noites e bazou, deixando-me a bebê-la sentado na minha cama encostado ao
portão. Boa noite.
Foi o mesmo
guarda que me veio acordar, às cinco da manhã. O outro já tinha bazado.
Despedi-me, agradeci as simpatias e fiz-me à estrada. Pensei que seria mais
fácil chegar a Lagos. A verdade é que aqueles cinquenta quilómetros
demoraram-me umas três ou quatro horas. Muitas subidas, e muito, muito
trânsito. Ao ponto dos meus olhos arderem com o fumo e ao ponto de parar várias
vezes! Já tinha apanhado trânsito, mas normalmente dava sempre para me ir
enfiando entre os carros. Ali, naquela sucessão de cidades e vilas até chegar a
Lagos, várias vezes não havia espaço nem para um gafanhoto!
Mas hei,
cheguei a Lagos!